National Geographic - Portugal - Edição 240 (2021-03)

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vermelha. Avisamos: ‘Por favor, pare de fazer o
que está a fazer. As nossas armas estão prontas
para disparar.’ Em resposta, eles levantam uma
bandeira branca para dizer ‘OK, vamos parar.’”
Caso contrário, cada dia é medido em cigarros e
chávenas de chá, jogos de voleibol ou críquete,
orações e tarefas mundanas.
Tanto a Índia como o Paquistão aprenderam
como tratar dos seus soldados neste ambien-
te, ao longo de 35 anos de guerra na montanha.
Os médicos do exército consideram que o envene-
namento por monóxido de carbono e os embolis-
mos são males comuns, causados pelo facto de os
soldados passarem demasiado tempo sedentários
em postos soterrados por neve. Agora, os soldados
são obrigados a praticar exercício diariamente.
“Cada POP [Procedimento Operacional Padrão]
foi escrito com sangue”, disse um coronel.
Antes de virem para aqui, muitos soldados que
conhecemos tinham travado combate em zonas
tribais na fronteira com o Afeganistão, no âmbito
do esforço do governo paquistanês para contra-
riar o terrorismo islâmico. “Aqui, temos de lutar
contra a natureza e a natureza é imprevisível”,
disse, pesarosamente, o médico. “Os seres huma-
nos são mais fáceis.”

NO OUTONO DE 1985, mais de um ano depois de a
Índia tomar posse de Siachen e 17 anos após a publi-
cação da linha de Hodgson, um diplomata indiano
enviou um pedido oficial. Esse pedido acabou por
chegar à secretária do geógrafo do Departamento
de Estado, George Demko, que, tal como Robert
Hodgson, fora fuzileiro e servira na Coreia.
Passado mais de um ano, George fez uma ac-
tualização nas directrizes cartográficas, declaran-
do que o Gabinete do Geógrafo revira a represen-
tação da fronteira entre a Índia e o Paquistão nos
mapas norte-americanos e encontrara “uma in-
coerência na representação e na categorização da
fronteira pelas diversas agências de produção [de
mapas].” Com vista a corrigir esta representação,
escreveu: “A Linha de Cessar-Fogo não será pro-
longada até à passagem de Caracórum como nas
antigas práticas cartográficas.” A linha de Hodg-
son foi apagada. Embora fosse retirada dos mapas
dos EUA, o Gabinete do Geógrafo não explicou se-
quer a razão pela qual ela alguma vez aparecera.

Quando chegámos a um acampamento conheci-
do como Paiju, sentíamos as articulações rígidas
e os pés doridos.
As condições de vida no local eram relativa-
mente confortáveis. Um gerador e algumas ante-
nas de satélite permitem uma ligação não fiável
ao mundo exterior. Nas instalações dos oficiais,
havia um emaranhado de fios desajeitadamente
ligado a um pequeno televisor para permitir ses-
sões nocturnas de entretenimento.
“Usamo-la para ver filmes motivacionais”, dis-
se-nos um homem.
“Como o ‘Rambo’?”, perguntou Cory, a brincar.
“Sim, exactamente”, respondeu o homem, com
uma expressão séria.
Noutros postos, a vida não é tão fácil. O minús-
culo posto avançado de Urdukas, constituído por
três iglôs prefabricados de esferovite, encarrapi-
tados sobre uma espectacular plataforma a cerca
de 4.000 metros, é ocupado apenas por quatro ho-
mens. “É muito aborrecido”, sussurrou um solda-
do a outro enquanto comíamos roti e um guisado
de galinha fibrosa. “Não há telemóveis, nem fil-
mes.” Durante o Inverno, Urdukas recebe apenas
quatro horas e meia de luz solar por dia. O acam-
pamento está rodeado por centenas de bidões de
querosene – essencial para a vida dos soldados,
fornecendo-lhes combustível para cozinhar e pro-
porcionando-lhes aquecimento. No interior de
cada abrigo, tudo está coberto de fuligem. Aqui as
únicas extravagâncias são o naswar (uma varieda-
de básica de tabaco de mascar) e o ludo, um jogo
paquistanês de tabuleiro. “Quando há oficiais, é
mais confortável”, resumiu um soldado.
No dia seguinte, encontrámos uma dezena de
soldados a descer, após o fim da patrulha de três
semanas. Vinham com um ar festivo. Conversei
com um capitão simpático, médico, enquanto ele
fumava um cigarro. “Correu tudo bem”, disse. “Ti-
vemos de evacuar três homens com edema cere-
bral de grande altitude, mas isso é normal.”
Até 2003, os dois exércitos trocaram regular-
mente entre si fogo de barragem de artilharia e
disparos de franco-atiradores, mas o cessar-fogo
acordado nesse ano deixou pouco que fazer aos
soldados. “É como um jogo de futebol”, disse ou-
tro capitão sobre a vida na linha da frente. “Geral-
mente, fazemos avisos levantando uma bandeira

“TEMOS DE LUTAR CONTRA A NATUREZA AQUI E A NATUREZA
É IMPREVISÍVEL”, DISSE, PESAROSAMENTE, O MÉDICO.

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