National Geographic - Portugal - Edição 240 (2021-03)

(Antfer) #1
UMA FRONTEIRA NAS MONTANHAS 83

de uma base de artilharia situada a dois quiló-
metros e meio de distância, registou-se um es-
trondoso som de derrocada.
“Foi inimaginável”, contou o major-general
Saqib Mehmood Malik. Cento e quarenta ho-
mens alojados numa dezena de edifícios fica-
ram sepultados debaixo de mais de 30 metros
de rocha, gelo e neve. Passaram-se meses até o
primeiro corpo ser encontrado.
Eu e Cory abrimos caminho pelo campo de de-
tritos ainda perigosamente instável. Sinais toscos,
feitos de pedaços tortos de telhado, assinalavam a
localização prévia de casernas – cada um pintado
com o número de cadáveres ali recuperados. Fi-
quei a pensar: terão estas pessoas morrido devido
ao erro de um geógrafo?
A linha de Hodgson “representou definitiva-
mente um papel na guerra que se seguiu. Não a
causou, mas foi, decididamente, um factor”, diz
Dave Linthicum. Foi ele que descobriu o aerogra-
ma de Hodgson enterrado nos registos do Depar-
tamento de Estado. Durante anos, Dave manteve
uma fotografia de Robert Hodgson afixada no seu
gabinete, como “lembrete para não fazer estrago”
e “ser responsável”, diz.
Robert Wirsing concorda que a linha repre-
sentou um papel no conflito, mas acrescenta:
“Não tenho razões para pensar que alguém te-
nha deliberadamente decidido entregar este ter-
ritório ao Paquistão.” Diz também não ter razão
para acreditar que venham a ser brevemente ne-
gociados quaisquer acordos de paz. Os últimos
acontecimentos, incluindo a violência contínua
em Caxemira e as tensões fronteiriças entre a Ín-
dia e a China, tornam improvável a resolução do
problema nos próximos tempos.
Wirsing não concorda que a disputa seja irra-
cional. “Não atribuo grande parte daquilo que se
passa entre a Índia e o Paquistão às emoções...
Acho que os países estão lá por boas razões, até
mesmo estratégicas... tendo em conta a fragilida-
de das fronteiras naquela região.”
Com efeito, enquanto a humanidade se esforçar
por dividir o nosso planeta em polígonos bem de-
lineados, algumas dessas linhas estão destinadas
a ser contestadas e homens como Abdul Bilal e
“Bull” Kumar serão destacados para combater por
elas. A geografia dita os seus próprios termos. j

Alguns anos após a correcção de George
Demko, Robert Wirsing, um académico da Uni-
versidade da Carolina do Sul que acompanhara
de perto o conflito de Siachen, começou a fazer
perguntas sobre a linha que outrora figurara nos
mapas norte-americanos e depois desaparecera.
Tendo descoberto, através de um general indiano,
que o governo da Índia pedira uma explicação e
não obtivera resposta, enviou cartas ao Departa-
mento de Estado e à Agência Cartográfica da De-
fesa, inquirindo-os sobre as suas origens.
Em 1992, o sucessor de Demko, William Wood,
respondeu. “Nunca houve uma directriz dos EUA
para mostrar uma fronteira de qualquer tipo fe-
chando a lacuna existente entre NJ 9842 e a fron-
teira da China”, escreveu. Wirsing não insistiu.

O RESCALDO


Os funcionários públicos paquistaneses jamais
aceitaram levar-nos, a mim e a Cory, a qualquer
local perto da linha da frente de onde pudéssemos
vislumbrar o ponto NJ9842. Não sei ao certo o que
eu esperava ver que não pudesse distinguir am-
pliando a imagem do Google Earth. É apenas uma
designação criada por seres humanos, um ponto
solitário numa cumeeira glaciar com um acampa-
mento do exército da Índia nas imediações.
Em vez disso, os funcionários ofereceram-se
para nos mostrar outro ponto. Subimos para os
jipes e percorremos, aos solavancos, uma estrada
de terra batida até ao cavernoso vale de Bilafond.
Directamente acima de nós, cumes de granito
brilhantes reluziam sob o sol da manhã, embo-
ra o solo do vale permanecesse obscurecido por
sombras profundas. Parámos na margem de um
grande campo coberto de pedregulhos.
Neste local, pouco antes das 2h30 da madruga-
da de 7 de Abril de 2012, o exército do Paquistão
sofreu a sua pior derrota no conflito de Siachen,
embora o sucedido nada tivesse que ver com os
indianos. Um enorme volume de terras despren-
dera-se e desmoronara-se sobre o acampamento
que servia de quartel-general a um batalhão. De
acordo com o testemunho prestado por soldados

“OS SERES HUMANOS SÃO MAIS FÁCEIS.”


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