National Geographic - Portugal - Edição 240 (2021-03)

(Antfer) #1
Nas últimas três décadas, grupos como o Projec-
to Innocence ajudaram a esclarecer até que ponto
o sistema de justiça norte-americano pode ser pe-
rigosamente falível, sobretudo em casos de pena
de morte. Testes de DNA e inquéritos à conduta
de agentes da polícia, procuradores e advogados
de defesa oficiosos contribuíram para libertar 182
pessoas do corredor da morte desde 1972. Em De-
zembro de 2020, tinham sido absolvidas mais de
2.700 pessoas condenadas desde 1989.
Os antigos reclusos do corredor da morte que
entrevistei são associados da organização Wit-
ness to Innocence (WTI). Sediada em Filadélfia
desde 2005, a WTI é uma organização sem fins lu-
crativos dirigida por antigos reclusos, entretanto
absolvidos, cujo principal objectivo consiste em
zelar para que a pena de morte seja abolida nos
EUA, modificando a percepção pública.
Nos últimos 15 anos, a intervenção da WTI jun-
to do Congresso dos EUA, dos parlamentos esta-
duais, dos assessores de políticas públicas e da co-
munidade académica contribuiu para a abolição
da pena de morte em vários estados, embora esta
continue a ter vigência legal em 28, a nível federal
e nas forças armadas dos EUA. Em 2020, foram
executadas 17 pessoas, dez das quais pela admi-
nistração federal. Foi a primeira vez que o número
de reclusos executados pela administração fede-
ral ultrapassou o valor da totalidade dos estados.

“FUI RAPTADO PELO ESTADO de Ohio quando tinha
17 anos”, resumiu Kwame Ajamu, no início da nossa
conversa no meu quintal. Hoje, ele preside ao con-
selho de administração da WTI. “Era uma criança
quando me mandaram para a prisão para ser exe-
cutado”, disse-me. “Não percebia o que me estava a
acontecer, nem como era possível que acontecesse.
No princípio, implorei a Deus que tivesse misericór-
dia de mim, mas rapidamente me apercebi de que
não haveria misericórdia.”
No dia em que chegou ao Estabelecimento Cor-
reccional do Sul do Ohio, Kwame foi conduzido a
uma ala cheia de homens condenados. No corre-
dor da morte, ao fundo, estava uma sala onde fora
instalada a cadeira eléctrica do Ohio. Antes de o
levarem à cela, os guardas fizeram questão de pas-
sar com ele por essa sala. “Um dos guardas quis
que eu visse a cadeira”, recorda. “Nunca hei-de
esquecer-me das suas palavras: ‘É ali que vais ter
o teu encontro escaldante’.”
Desde o dia em que Kwame Ajamu foi condena-
do até 2005 – ano em que o Supremo Tribunal Fe-
deral dos EUA decidiu que a execução de menores

violava a proibição, determinada pela Constitui-
ção, de castigos cruéis e incomuns – o país execu-
tou 22 pessoas condenadas por crimes cometidos
antes de completarem 18 anos de idade, segundo
o Centro de Informação sobre a Pena de Morte (ou
DPIC na sigla anglófona).
A decisão do Supremo Tribunal foi tomada à re-
velia de uma história de execução de menores ini-
ciada muito antes de os Estados Unidos da Amé-
rica sequer existirem. O primeiro caso conhecido
de um menor executado nas colónias britânicas
aconteceu em 1642, na Colónia de Plymouth,
onde Thomas Granger, de 17 anos, foi enforcado
pelo crime de sodomia com animais domésticos.
Nos primeiros tempos do país, crianças ainda
mais novas foram condenadas à mais dura pena
judicial. Em 1786, Hannah Ocuish, de 12 anos,
uma rapariga nativa-americana, foi enforcada em
New London, Connecticut, acusada de homicídio.
Durante a maior parte dos duzentos anos que se
seguiram, o factor etário foi ignorado na aplicação
das sentenças. Menores e adultos eram julgados,
condenados e executados tendo em conta os seus
crimes e não a maturidade. Até ao século XX, os
registos criminais disponíveis não mencionam re-
gularmente a idade dos executados. Em 1987, ano
em que o Supremo Tribunal dos EUA concordou,
pela primeira vez, em ponderar a constitucionali-
dade da pena de morte para menores, já tinham
sido documentadas 287 execuções de menores.
Em 1978, quando o Supremo Tribunal decidiu que
a lei do Ohio sobre a pena de morte violava a proi-
bição de castigos cruéis ao abrigo da Oitava Emen-
da, bem como o requisito da igualdade de protec-
ção ao abrigo da lei, determinado pela Décima
Quarta Emenda, a sentença de morte de Kwame
Ajamu foi comutada para prisão perpétua. Mesmo
assim, ele ficou atrás das grades durante mais um
quarto de século até ser libertado. Só viria a ser
absolvido em 2014, depois de um repórter de uma
revista de Cleveland e o Projecto Ohio Innocence
terem ajudado a desmontar a mentira que o em-
purrara para o corredor da morte.
“Há um amplo leque de falhas que podem pro-
vocar condenações erradas em casos de pena ca-
pital”, disse Michael Radelet, sociólogo da Univer-
sidade do Colorado. “Os agentes da polícia podem
obter uma confissão à força ou, de qualquer outra
maneira, falsa. A acusação também pode supri-
mir provas de inocência. Por vezes, testemunhas
oculares fazem identificações bem-intenciona-
das, mas erradas. A falha mais frequente é o per-
júrio, cometido por testemunhas da acusação.”

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