National Geographic - Portugal - Edição 240 (2021-03)

(Antfer) #1
Poucos opositores da pena capital resumem tão
frontalmente a sua posição contra as execuções
sob tutela do Estado como a irmã Helen Prejean,
co-fundadora da WTI e autora do livro “Dead Man
Walking”, o campeão de vendas que inspirou o fil-
me de 1995 com o título “A Última Caminhada”,
protagonizado por Susan Sarandon e Sean Penn.
A freira sem papas na língua descreveu a ma-
neira como a sua atitude face à pena de morte se
tornou pessoal, ao fazer-lhe recordar o medo que
sentira de uma experiência dentária bastante roti-
neira há alguns anos. “Eu ia desvitalizar um dente
numa segunda-feira de manhã,” contou-me. “Du-
rante a semana anterior à desvitalização, sonhei
com ela. Quanto mais se aproximava o dia da con-
sulta, mais nervosa eu ficava.”
Ela prosseguiu: “Agora imagine como será viver
antecipadamente o dia para que está marcada a
sua morte. Dos seis indivíduos que até hoje acom-
panhei ao longo do corredor da morte, todos con-
tavam o mesmo pesadelo: os guardas arrastam-
-nos para fora das celas, eles gritam a pedir ajuda
e resistem e, por fim, acordam e apercebem-se de
que ainda se encontram na cela. Percebem que é
só um sonho. Mas sabem que, um dia, os guardas
vão mesmo chegar para vir buscá-los e que já não
será um sonho. É essa a tortura. É uma tortura
que, até hoje, o Supremo Tribunal se recusa a re-
conhecer como violação da proibição constitucio-
nal dos castigos cruéis e incomuns.”
Mais de 70% dos países do mundo aboliram a
pena de morte, ou na lei ou na prática, segundo
o DPIC. Dos locais onde a Amnistia Internacional
documentou execuções recentes, os EUA foram
um entre apenas 13 países onde ocorreram execu-
ções em cada um dos últimos cinco anos.
O apoio dos norte-americanos à pena capital
tem vindo a diminuir desde 1996, ano em que 78%
defendiam a pena de morte para indivíduos con-
denados por homicídio. Em 2018, esse apoio des-
cera para 54%, segundo o Pew Research Center.

ANTES DE RAY KRONE ser condenado à morte, a sua
vida não tinha quaisquer semelhanças com a de
Kwame Ajamu. Natural de Dover, na Pensilvânia,
Ray era o mais velho de três filhos e um rapaz típico
de uma aldeia norte-americana. Criado como lute-
rano, cantava no coro da igreja, foi escuteiro e, na
adolescência, era conhecido como um miúdo bas-
tante esperto, com tendência para pregar partidas.
Fez um pré-alistamento na Força Aérea quando fre-
quentava o ensino secundário e, depois de concluir
o 12.º ano, prestou serviço militar durante seis anos.

Na sequência de uma dispensa honrosa, per-
maneceu no Arizona e foi trabalhar para o Serviço
Postal dos EUA, emprego que tencionava manter
até se reformar. Essa carreira de sonho e a sua vida
foram abruptamente estilhaçados em Dezembro
de 1991, quando Kim Ancona, de 36 anos e gerente
de um bar, foi encontrada esfaqueada na casa de
banho masculina de um estabelecimento comer-
cial de Phoenix frequentado por Ray Krone.
A polícia centrou de imediato a sua atenção em
Ray como suspeito depois de saber que ele tinha
dado boleia a Kim poucos dias antes. Um dia após
a descoberta do cadáver, Ray Krone recebeu or-
dens para fornecer uma amostra de sangue, saliva
e cabelo. Foi igualmente feito um molde dentário
seu. No dia seguinte, foi detido e acusado de ho-
micídio qualificado.
Segundo os investigadores, os dentes desali-
nhados de Ray correspondiam a marcas de mor-
dedura no corpo da vítima. Pouco depois, as re-
portagens jornalísticas troçavam de Ray Krone,
chamando-lhe o homicida do “dente torto”. Tal
como no caso de Kwame Ajamu, não havia provas
forenses que o associassem ao crime. O estudo de
DNA era então uma ciência relativamente jovem
e nem a saliva nem o sangue recolhidos no local
do crime foram submetidos a qualquer exame.
Outros testes, mais simples, ao sangue, à saliva e
ao cabelo revelaram-se inconclusivos. Existiam
provas de inocência, mas estas foram ignoradas,
como o facto de as pegadas em redor do cadáver
da vítima não coincidirem com a dimensão dos
pés de Ray, nem com quaisquer dos seus sapatos.
Baseando-se em pouco mais do que o depoi-
mento de um perito dentário, que testemunhou
que as marcas de mordedura no corpo da vítima
coincidiam com os dentes desalinhados, um júri
declarou Ray culpado. Foi condenado à morte.

OS NEGROS CONSTITUEM


MAIS DE 41% DOS


CONDENADOS NO


CORREDOR DA MORTE,


MAS APENAS 13,4% DA


POPULAÇÃO DOS EUA.


INOCENTES 39

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