National Geographic - Portugal - Edição 240 (2021-03)

(Antfer) #1
62 NATIONAL GEOGRAPHIC

O GEÓGRAFO


No dia 27 de Junho de 1968, 21 anos antes de o
major Bilal conduzir a sua equipa ao cume do
pico 22.158, foi enviado o Aerograma A-1245 ao
Gabinete do Geógrafo, uma unidade pouco co-
nhecida instalada no Departamento de Estado
dos EUA, na Rua C NW, na cidade de Washin-
gton. A comunicação foi parar à secretária de
Robert D. Hodgson, um geógrafo-assistente de
45 anos.
Assinada pelo encarregado de negócios da em-
baixada norte-americana em Nova Deli, a carta
começava da seguinte forma: “Em diversas oca-
siões... o governo da Índia apresentou os seus
protestos formais à embaixada devido aos mapas
do governo dos EUA que foram distribuídos na
Índia, descrevendo a situação em Caxemira como
‘em disputa’, ou de alguma forma separada do res-
to da Índia.” No final, havia um pedido de orienta-
ção quanto à forma de representar as fronteiras da
Índia nos mapas norte-americanos.
Para a Índia e o Paquistão, países nascidos do
derramamento de sangue que acompanhou a
Partição (o termo para a dissolução e subdivisão
da Índia Britânica), os mapas eram uma questão
de identidade nacional. Para Hodgson e outros
funcionários do Gabinete do Geógrafo, em con-
trapartida, tratava-se de uma tarefa profissional.
Todos os anos, o governo dos EUA publicava
milhares de mapas. Era porventura o maior edi-
tor de mapas do mundo. A responsabilidade de
representar as fronteiras políticas internacionais
recaía sobre o Gabinete do Geógrafo.
Devido a esta missão, o gabinete exercia con-
siderável influência sobre ramos poderosos do
país, incluindo o Departamento da Defesa e a
CIA. O gabinete detinha a derradeira autorida-
de de representar o alinhamento das fronteiras
políticas do mundo no que dizia respeito às
políticas oficiais norte-americanas e, por sua
vez, ajudou a moldar a forma como os outros
países viam os EUA. Isso também implicava
que, entre as cerca de 325 fronteiras terrestres
reconhecidas pelos EUA, as dúvidas cartográfi-
cas mais difíceis recaíssem sobre os ombros de

Vinte e oito anos mais tarde, eu e o fotógrafo
Cory Richards caminhávamos desajeitadamente
sobre a neve, coberta de marcas de botas, vindos
de um heliporto a cerca de sete quilómetros do lo-
cal onde decorreu aquele recontro. Como monta-
nhistas profissionais, já tínhamos escalado picos
em Caracórum e sabíamos os esforços e capacida-
des necessários para sobreviver ali.
Ao longo de mais de três décadas, a Índia e o
Paquistão têm posicionado jovens soldados nes-
te ambiente inóspito, onde permanecem meses a
fio, guardando zonas distantes e desabitadas. Os
observadores começaram a referir-se a este con-
fronto como conflito do glaciar de Siachen, devi-
do ao monumental manto de gelo que domina a
paisagem onde se encontram as contestadas fron-
teiras entre o Paquistão, a Índia e a China.
Desde 1984, os dois contendores sofreram
milhares de baixas. Um cessar-fogo foi acor-
dado em 2003, mas dezenas de soldados ainda
morrem todos os anos no local devido a desliza-
mentos de terras, avalanchas, desastres de heli-
cóptero, doença de altitude e embolismos, entre
outras causas. No entanto, todos os anos sol-
dados indianos e paquistaneses voluntariam-
-se alegremente para prestar serviço militar no
local. “É considerado uma medalha de honra”,
admitiu um oficial paquistanês.
Livros, notícias e artigos académicos têm sido
escritos sobre o conflito e os autores comentam
frequentemente o absurdo de existirem exérci-
tos em combate sobre um território tão inútil.
E reconhecem que os dois inimigos teimosos,
cegos pelo ódio, farão tudo o que puderem para
se oporem um ao outro.
No entanto, as circunstâncias que levaram as
duas partes a começar os combates nunca foram
completamente explicadas. Passei quatro anos
a seguir um rasto de documentos recentemen-
te tornados acessíveis ao público e a entrevistar
funcionários públicos, académicos e militares na
Índia, no Paquistão e nos Estados Unidos, numa
tentativa de desvendar o mistério obscuro, mas
importante, da saga de Siachen. Agora, eu e Cory
viemos ao Paquistão para verificarmos, em pri-
meira mão, as consequências daquilo que pode
acontecer devido ao simples acto de desenhar
uma linha num mapa.

DURANTE TRÊS DÉCADAS, A ÍNDIA E O PAQUISTÃO ENVIARAM JOVENS
SOLDADOS PARA ESTE AMBIENTE INÓSPITO PARA GUARDAREM

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