National Geographic - Portugal - Edição 240 (2021-03)

(Antfer) #1
UMA FRONTEIRA NAS MONTANHAS 63

Infelizmente para Robert Hodgson, o conjunto
de problemas geopolíticos e fronteiriços surgidos
sob a forma do Aerograma A-1245 representava
um dos mais difíceis do mundo, um “pesadelo
cartográfico”, nas palavras de outro geógrafo. Tra-
tava-se da disputa sobre Caxemira.

DEPOIS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, quando
os britânicos renunciaram ao controlo anterior-
mente detido sobre o subcontinente indiano, toma-
ram a decisão de dividir a região em dois Estados
baseados nas duas religiões dominantes: a Índia
para os hindus e o Paquistão para os muçulmanos.
Comissões nomeadas pelo vice-rei britânico,
Louis Mountbatten, e constituídas por represen-
tantes dos dois partidos políticos mais influentes,
o Congresso Nacional Indiano e a Liga Muçulma-
na, foram convocadas para determinar as novas
fronteiras. A tarefa era impossível tendo em conta
que milénios de sobreposição de culturas e impé-
rios legaram à Ásia Austral populações mistas de
hindus, muçulmanos e sikhs.
Ao bater da meia-noite do dia 15 de Agosto de
1947, a Índia e o Paquistão conquistaram a inde-
pendência. A violência eclodiu quando milhões
de pessoas assustadas tentaram transpor as novas
fronteiras para se juntarem aos praticantes da sua
religião. O conflito mais sangrento aconteceu no
Punjab, o coração agrícola do subcontinente. No
meio do caos, o número de mortos poderá ter sido
superior a dois milhões de pessoas.
Nos termos do plano de Mountbatten, um reino
montanhoso a norte do Punjab, oficialmente co-
nhecido como Principado de Jammu e Caxemira,
tinha um dilema próprio para resolver. Embora a
população fosse esmagadoramente muçulmana,
Caxemira era governada por um marajá hindu e
foi-lhe dada a possibilidade de escolher o país ao
qual se juntaria. Semanas após a independência,
porém, milícias de homens das tribos pashtun,
com o apoio do incipiente exército do Paquistão,
começaram a avançar em direcção ao palácio do
marajá em Srinagar para reclamar Caxemira para
o Paquistão. O marajá entrou em pânico e assinou
um Instrumento de Adesão à Índia. A Índia reagiu
com o envio de transportes aéreos e travou as mi-
lícias. Semanas mais tarde, os novos países esta-
vam em guerra.

Hodgson e dos seus colegas geógrafos. A resolu-
ção destes dilemas exigia o rigor de um topógra-
fo e a abordagem metódica de um investigador.
A expressão utilizada para definir esta tarefa é
“recuperar fronteiras”, explica Dave Linthicum,
que se reformou recentemente após mais de três
décadas de trabalho como cartógrafo para a CIA
e para o Gabinete do Geógrafo. “Não andamos a
traçar linhas ao sabor da nossa imaginação. An-
damos a recuperar as fronteiras nos locais onde
estas foram marcadas em 1870, em 1910, ou seja lá
quando for, naqueles mapas e traçados antigos.”
Hoje, Dave e os seus contemporâneos passam
boa parte do seu tempo a examinar imagens de
alta definição captadas por satélite. Em compa-
ração, Robert Hodgson, antigo fuzileiro, iniciou a
sua carreira a “caçar mapas” para o Departamento
de Estado enquanto esteve destacado na Alema-
nha entre 1951 e 1957. A caça de mapas significa-
va andar de um lado para o outro de automóvel,
revolvendo arquivos cheios de mapas bafientos e
verificando, fisicamente, a localização de cidades
e marcos geográficos.
Nos primeiros tempos da guerra fria, um
erro cartográfico poderia ter consequências ca-
taclísmicas: aviões norte-americanos podiam
ser enviados para bombardear a cidade errada
ou até o país errado, se a localização no mapa
estivesse apenas alguns quilómetros desviada
ou se o topónimo fosse escrito de forma ligeira-
mente diferente.
Dave Linthicum percebe bem a facilidade com
que se pode cometer um erro. Há uma década foi
incumbido de traçar a fronteira entre a Nicarágua
e a Costa Rica, acompanhando o rio San Juan até
ao mar das Caraíbas. Marcou a fronteira ao longo
de uma antiga via fluvial, e não do curso actual do
rio, atribuindo erroneamente alguns quilómetros
quadrados de uma ilha à Nicarágua. O Google
Maps adoptou a sua fronteira e, pouco depois, a
Nicarágua enviou soldados para ocupar a ilha.
“Às vezes, quando trabalhava com os meus
colegas, inquiríamo-nos sobre o motivo pelo
qual estávamos a perder tanto tempo com este
minúsculo [segmento de fronteira] e depois,
duas semanas mais tarde, aquele sítio minús-
culo passava a ser muito relevante ou extrema-
mente importante”, diz Dave.

UM TERRITÓRIO BRAVIO E DESABITADO.


(Continua na pg. 74)


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