Dragões - 202101

(PepeLegal) #1

REVISTA DRAGÕES JANEIRO 2021


HISTÓRIA DE UM PRESO POLÍTICO


O portismo


encarcerado


Há quase 90 anos, nos primórdios da ditadura e das competições nacionais de
futebol, os clubes deviam ser a menor das preocupações de quem sofria nos
calabouços do regime. Esta é uma ideia fácil de formular em abstrato, mas
um confronto com a realidade dos testemunhos que se preservam desse tempo
revela que não seria bem assim. Ou, pelo menos, não seria sempre assim. Do
Aljube de Lisboa, em 1932, um adepto do FC Porto escreveu ao clube porque
estava preocupado com a possibilidade de perder a condição de sócio. Esta
é a história de José Moutinho, portista e comunista no Portugal de Salazar.

À


s 22h00 de 21 de julho de
1932, quatro dias depois da
conquista do Campeonato
de Portugal numa final
contra o Belenenses e duas
semanas após a tomada de posse
de António de Oliveira Salazar
como presidente do Conselho de
Ministros, a direção do FC Porto
reuniu-se no primeiro andar do
número 179 da Rua Formosa,
bem no centro do Porto, onde


então se situava a sede do clube.
A conduzir os trabalhos, que se
estenderam por duas horas e um
quarto, estava António Augusto
de Figueiredo e Melo, antigo
atleta que era presidente daquele
órgão desde o ano anterior.
O rol de assuntos a tratar era
diversificado: aprovou-se a
entrada de 25 novos sócios, que
ficaram com os números 3.359
a 3.383; analisou-se – e rejeitou-

se – o convite para a realização de
jogos particulares em Ayamonte;
abordou-se homenagens aos
novos campeões nacionais
que eram propostas ou já
tinham sido promovidas por
figuras e instituições do Porto
e de Viseu; e decidiu-se como
seriam premiados os atletas
que tinham contribuído para o
engrandecimento do palmarés do
clube naquela época: “Resolvido

ofertar medalhas de prata a
todos os nossos atletas que nas
várias modalidades desportivas
conquistaram títulos de
campeões regionais, excepto aos
componentes e suplentes do nosso
grupo de honra de football que
lhes serão entregues medalhas
de oiro por motivo de haverem
obtido o titulo de Campeão
de Portugal”. Mas era preciso,
também, deliberar sobre pedidos

A homenagem à equipa campeã de Portugal
dominou a agenda da reunião de Direção

TEXTO: DIOGO FARIA


REVISTA DRAGÕES JANEIRO 2021


de sócios que viviam situações
complicadas. A Clemente Joaquim
de Magalhães, que oferecera “um
quadro a óleo com o distintivo
d’este clube” e pedia que fosse
aberta uma subscrição para a
sua venda, “por se encontrar
em difíceis circunstâncias”, a
direção decidiu “enviar-lhe
cincoenta escudos”, que em 2021
equivaleriam a cerca de 48 euros.
O problema de José Moutinho, por
incluir uma dimensão política,
podia ser mais delicado. A ata da
reunião regista: “Recebida carta
do associado d’este club, senhor
José Moutinho, comunicando
encontrar-se preso no Aljube de
Lisboa, por motivos políticos, e
solicitando que seja mantida a
qualidade de sócio, enquanto
durar aquela situação, visto que as
circunstâncias precárias em que
se encontra não lhe permitirem
satisfazer as suas quotas”. Mas
quem era este homem?

UM “INCANSÁVEL
DEMOLIDOR SOCIAL”
Nascido na freguesia de Numão,
em Vila Nova de Foz Coa, em
1903 ou 1904, José Augusto
da Fonseca Moutinho já tinha
descido o Douro até ao Porto
em 1924, quando, ainda muito
jovem, aderiu ao novíssimo
Partido Comunista Português,
fundado três anos antes. Cedo
se tornou uma das figuras mais
relevantes da implantação do
partido na cidade, integrando o
núcleo duro da sua direção local


  • com Anastácio Ramos, António
    de Carvalho e António Nunes –,
    assumindo posições de relevo na
    imprensa socialista portuense – foi
    redator principal, editor e diretor
    do jornal Bandeira Vermelha – e
    representando a sua estrutura em
    iniciativas nacionais – foi um dos
    delegados ao II Congresso do PCP,
    realizado a 30 de maio de 1926.


Com o advento da Ditadura
Militar, a atividade política de José
Moutinho, como a de milhares de
outros comunistas durante o meio
século seguinte, ficou marcada
pela resistência ao poder e pelas
perseguições movidas pelas
autoridades. Em 1927, foi preso
pela primeira vez, por ser, de
acordo com o cadastro que a PIDE
elaboraria mais tarde, um “agente
de ligação do Socorro Vermelho
Internacional”.
No ano
seguinte, seria
encarcerado
em mais do que
uma ocasião,
primeiro “para
averiguações”,
depois por
“estar implicado
no movimento
revolucionário
e por tentativa
de assalto ao
Quartel da
GNR”, enquanto
um dos
instigadores
de uma
concentração
popular
no Monte
Aventino, que
lhe valeu uma
condenação a 180 dias de
cadeia. A sua vida profissional
mudaria entretanto. Em 1930 era
identificado como empregado
num quiosque da estação de
São Bento, mas no ano seguinte
já era proprietário de um
estabelecimento na Rua de Sá da
Bandeira, a Livraria Moutinho,
onde, clandestinamente, vendia
imprensa e literatura comunista,
que também publicava – em 1932,
a sua Editorial Moutinho deu à
estampa uma edição do Manifesto
Comunista de Friedrich Engels e
Karl Marx. Por essa altura, já era

casado e vivia na Travessa do Bom
Retiro, no Bonfim, junto à atual
estação de metro do Heroísmo.
Foi nos primeiros meses de 1932
que ocorreram os acontecimentos
que o conduziram à prisão pela
quinta vez e que poderiam
ter colocado em causa a sua
continuidade como sócio do FC
Porto. A 16 de fevereiro, foi detido
na sequência de buscas à sua
loja, onde além de vários livros
e revistas
socialistas
foram
encontrados
postais com
imagens
de figuras
como Lenine,
Marx e Gorki.
Interrogado – e
provavelmente
torturado – nos
dias seguintes,
revelou vários
aspetos da
sua biografia
política, mas é
difícil apurar
se o que disse
era tudo
verdade ou
se reproduziu
uma narrativa
previamente
combinada. No retrato
que ficou traçado no seu
cadastro, foi caracterizado
como um “organizador e
orientador dos elementos
comunistas”, “inteligente e
submisso serventuário da 111.ª
Internacional” que “defende
publicamente o regime
revolucionário das Repúblicas
Soviéticas”, “nocivo à pacificação
das classes trabalhadoras”.
Considerado “perigoso” e
“apologista de meios violentos”,
incutia “nos espíritos fracos
a semente do ódio contra a

ditadura”. Apesar de “exteriormente
polido e bem vestido”, era também
um “incansável demolidor social”.
Transferido em abril para o
Aljube de Lisboa, seria libertado
apenas em agosto. Até ao final da
década de 30 viria a ser preso pelo
menos mais duas vezes, passando
uma temporada em Peniche.

A DECISÃO
A direção do FC Porto podia não
conhecer com detalhe em que é que
consistia a atividade subversiva de
um dos seus quase 4.000 sócios,
mas isso é pouco relevante. A ata da
reunião de 21 de julho regista que
José Moutinho estava preso “por
motivos políticos”, e não era difícil
para qualquer elemento dos órgãos
de gestão de uma instituição que
já tinha grande relevância social
perceber, em concreto, o que é que
isso significava no Portugal daquele
tempo. A decisão a tomar sobre o
pedido do homem que temia perder
a ligação formal ao clube assentava,
por isso, em pressupostos claros:
nas mãos da direção estava a
possibilidade de deixar cair um
sócio que era um adversário do
regime – e um criminoso, segundo
a conceção legal então vigente. A
deliberação foi noutro sentido:
“Resolvido responder que prestamos
ao conteúdo da sua carta a nossa
melhor atenção e que tomando esta
Direcção em consideração as razões
que o obrigam a não satisfazer as
suas mensalidades, resolveu anotar
no livro de registo de sócios a sua
auzência, esperando que, no seu
regresso, procurará regularizar a
sua situação adentro d’este club”.
Conscientemente, os representantes
dos associados deram a um dos
seus pares que tinha problemas
conhecidos com as autoridades
a possibilidade de manter o
vínculo ao clube. Em 1932, podia
haver perseguições políticas em
Portugal, mas não era no FC Porto.

António Figueiredo e Melo
presidiu à reunião de Direção
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