Clipping Banco Central (2021-03-07)

(Antfer) #1

CELSO MING - Razões de governo e direito ao luto


Banco Central do Brasil

O Estado de S. Paulo/Nacional - Economia
domingo, 7 de março de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

Clique aqui para abrir a imagem

Autor: CELSO MING


O presidente Jair Bolsonaro pode ter lá suas razões de
governo para julgar "frescura e mimimi" a prostração
dos brasileiros pelos mais de 263 mil mortos pela covid-



  1. Mas, em assim agindo e em assim se manifestando,
    contraria leis multimilenares, que existem desde que o
    homem é homem.


A mais representada das tragédias gregas em todos os
tempos é a sempre atual Antígona, de Sófocles,
encenada pela primeira vez em 441 antes de Cristo.
Trata do conflito entre razões de governo e direitos de
família.


Creonte, o então todo-poderoso de Tebas, decretou que
Polinices, filho de Édipo, não poderia ser sepultado na
cidade, por considerá-lo traidor. Seu cadáver teria de
ser exposto às intempéries e à ação dos cães e das
aves carniceiras. Antígona, irmã de Polinices, se
rebelou contra essa determinação "desumana e
contrária aos deuses". Em segredo, recobriu o cadáver
do irmão com a veste dos mortos, fez as abluções
devidas e o sepultou de acordo com os rituais sagrados.


"As tuas determinações não têm força" - justificou-se
depois diante de Creonte - "para impor aos mortais até a
obrigação de transgredir normas divinas, não escritas,
inevitáveis."

Por sua insubordinação foi condenada à morte. Mas as
consequências vieram a galope. Creonte e sua família
foram castigados pelos deuses. "Cedo ou tarde, o mal
parecerá um bem àquele que os deuses resolveram
desgraçar" canta o coro da peça.

O direito ao luto e a reverência aos mortos são
registrados pelos clássicos e pelos que vieram depois.
Na Ilíada, de Homero, Agamenon, o comandante grego,
se submete a sacrificar sua filha Ifigênia para obter
ventos favoráveis para a frota paralisada nas areias de
Aulis. É mais uma situação em que razões de governo
se sobrepujaram aos direitos de família. Os castigos se
sucederam. De volta vitorioso a Micenas e em vingança
pelo assassinato de Ifigênia, Agamenon foi decapitado a
machado por sua mulher Clitemnestra. Anos depois, o
filho de ambos, Orestes, vinga a morte do pai e elimina
a mãe.

Até entre inimigos, respeitam-se os funerais. Nas cenas
finais da Ilíada, o rei de Troia, Príamo, arrisca sua vida,
transpõe o acampamento dos gregos, ajoelha-se diante
de Aquiles, que matou seu filho Heitor em luta diante
das muralhas de Troia, e implora a devolução do
cadáver para que possa ser pranteado e, depois,
cremado. O "animal Aquiles" - na expressão de Christa
Wolf, em sua obra "Cassandra" - se comove com a
coragem do rei inimigo, devolve o cadáver de Heitor e
determina trégua na guerra, até que se completassem
as exéquias.

Quem viveu tempos não muito distantes deve lembrar-
se. A morte de alguém envolvia a família, a rua, o bairro,
a aldeia inteira. As lojas baixavam as portas em sinal de
luto, os sinos dobravam a finados, as bandeiras eram
hasteadas a meio pau. Nas solenidades e antes de
eventos esportivos, guarda-se um minuto de silêncio em
memória do falecido.
Free download pdf