Clipping Banco Central (2021-03-07)

(Antfer) #1

Antonio Prata - #gadjiberibimba


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Cotidiano
domingo, 7 de março de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de "Nu,
de Botas?


Só entendi o surrealismo quando já estávamos
afundados nas trincheiras da Covid


A primeira vez que ouvi falar em surrealismo foi na
escola. A professora nos mostrou umas obras de arte
no retroprojetor e passou uns poemas e manifestos pra
gente ler. A apostila explicava: a queda dos piqueniques
com champanhe do Manet pras trincheiras com gás
mostarda da Primeira Guerra Mundial havia sido tão
traumática que a lógica tinha se esgarçado. As palavras
não davam conta de descrever o horror. Para retratar a
realidade era preciso espatifar as lentes.


Não entendi. Quer dizer, entendi daquela forma
protocolar e superficial como entendemos tantas coisas
na escola. Da tabela periódica ao simbolismo, do II às
figuras de linguagem. Depois, ao longo da vida, a gente
apanha um pouco aqui, se apaixona acolá, lê uns livros,
assiste a uns filmes, até ir se dando conta de que todo o
conteúdo das apostilas tratava do nosso mundo, da
nossa vida, das pessoas ao nosso redor. Machado de


Assis é um gênio porque descreveu, 150 anos atrás, o
seu cunhado.

Só fui entender de verdade o surrealismo no ano
passado, quando já estávamos bem afundados nas
trincheiras da Covid, envenenados pelo gás mostarda
do bolsonarismo. Meu professor foi o dramaturgo
Eugène lonesco. Minha apostila, a peça "O
Rinoceronte''

Do nada, numa cidade spoiler- começam a aparecer
rinocerontes. No começo o pessoal se choca. Depois,
passa a ser um fato mais ou menos corriqueiro. Não
demora para o protagonista descobrir que os bichos
são, na verdade, os moradores da cidade. Por alguma
razão misteriosa, amigos, parentes, vizinhos, todos vão
virando rinocerontes, até que o personagem principal se
sente coagido a também transformar-se num animal.
Não vou contar o fim da história.

É uma peça que se lê com o estômago embrulhado,
porque fala do Brasil de hoje: presidente rinoceronte,
ministros rinocerontes, rinocerontes aglomerando sem
máscara, rinocerontes matando crianças, rinocerontes
lucrando e rinocerontes rindo disso tudo. Ionesco
escreveu teatro do absurdo? De forma alguma. Foi
apenas um realista obcecado descrevendo os regimes
totalitários de sua época: nazifascismo, comunismo.

Duzentos e sessenta mil mortos, subindo, acelerando e
o rinoceronte em chefe pisoteando mais e mais. Eu e
tantos outros na imprensa e nas redes estamos há mais
de dois anos gritando: rinocerontes! Rinocerontes!
Rinocerontes! Muito em breve chegaremos a 300 mil
mortos. "Rinocerontes!". Viu? Nada acontece.

Sinto que as palavras não dão conta de descrever o
horror; o que dizer sobre freá-lo? Separa retratar a
realidade é preciso espatifar as lentes, como há cem
anos, tomo emprestados os cacos linguísticos criados
pelo dadaísta Hugo Bali. O poeta alemão escreveu
poemas inteiros só com palavras por ele inventadas,
"para lembrar o mundo de que existem pessoas de
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