Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1

ENTREVISTA / Matheus Arcaro


10 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

Costuma levar essa intersecção entre
fi losofi a, arte e literatura para a sala
de aula?
Uma das coisas que engessam a sala de aula
propriamente é ter que seguir o conteúdo à ris-
ca e ter um material apostilado, sobretudo em
escola particular, mas sempre que possível eu
tento fazer uma atividade diferenciada com os
alunos, justamente nesse campo fi losofi a-socio-
logia-literatura-artes plásticas, porque além de
escritor eu também sou artista plástico, então
eu gosto de fazer essa intersecção entre esses
quatro itens e a psicologia também... Entre esses
cinco elementos, já levei alguns contos meus,
por exemplo, os contos que tratam de morte, e
pedi para eles uma refl exão sobre isso. Eu cos-
tumo dizer que a literatura está permeada por
temas que são fi losófi cos. Aliás, é difí cil algo que
não seja fi losófi co, não é? Uma pergunta sobre a
própria existência já é uma pergunta de teor fi lo-
sófi co, então grandes temas da fi losofi a também
são grandes temas da literatura. E a diferença é o
modo de tratá-los. O Ernesto Sabato, um escritor
argentino que eu admiro bastante, fala dos pro-
blemas fi losófi cos tratados de maneira natural,
um personagem de carne e osso. São os roman-
ces, literatura de forma geral... Então, os adoles-
centes gostam bastante dessa forma imagéti-
ca de enxergar o mundo, e eu acho que é uma
maneira muito mais efi caz de passar conceitos
fi losófi cos do que simplesmente dizer o que o
PLATÃO 2 escreveu ou o que o Aristóteles escreveu,
sendo muito pouco se a gente pode trazer isso
em forma de imagens, e o Nietzsche faz isso com
muita propriedade, aliás, um dos temas do meu
mestrado é justamente a prevalência da metáfo-
ra em relação ao conceito no texto do Nietzsche.
Não por acaso, Nietzsche escreve de forma afo-
rismática, não por acaso ele tem um romance
fi losófi co, o Assim falou Zaratustra, que tem
protagonista... Eu acho possível a gente tratar de
temas fi losófi cos de forma imagética.

Com quais autores trabalha
para fazer essa intersecção?
Dois autores que tenho usado bastante,
que não estão nas listas de vestibular nem nos
conteúdos programáticos, são o fi lósofo e poeta
Bachelard e o escritor Camus, ambos franceses,

porque eles trabalham nesse limiar. Aliás, tem
um texto muito bonito sobre FERNANDO PESSOA 3
dizendo que Pessoa é um fi lósofo por excelên-
cia, justamente porque ele entendeu essa ne-
cessidade de abandonar a unicidade, aquela
verdade absoluta... O Camus tem uma frase
muito lapidar a esse respeito: “Se você quer ser
fi lósofo, escreva romances”, ele mesmo fez isso.
Quando escreve O Estrangeiro,Camus dá uma
noção fi losófi ca que é a noção de absurdo; o per-
sonagem Meursault é a concretização, a perso-
nifi cação dessa falta de sentido, já que, excitado
pelo sol, mata. Trabalho com esses dois grandes
autores, Camus e Bachelard, nesse limiar, além
do Fernando Pessoa, claro.

A propositura contrária: da literatura
para a fi losofi a... Você também trabalha
nesse sentido em sala de aula?
Sim, sem dúvida. Eu me lembro de dois
exemplos recentes. O primeiro é um texto
do RESENDE 4 que se chama A vista cansada
em que ele fala o seguinte: “O hábito suja os
olhos e lhes baixa a voltagem” e eu falo que
esse é o próprio papel da fi losofi a. Aliás, eu
dou esse texto como introdução fi losófi ca,
dizendo que a criança e o poeta são aqueles
que conseguem ver o mundo de uma manei-
ra mais límpida. O próprio Fernando Pessoa
também tem isso e eu uso um texto dele tam-
bém, de O guardador de rebanhos, para exem-
plifi car esse primeiro olhar em relação à fi lo-
sofi a. Até porque o que nos ensina a fi losofi a
é porque o homem faz de novo, porque ele se
assombra diante do mundo tanto das belezas
quanto das tragédias. E uso ainda textos do
poeta Manoel de Barros, sobretudo a noção
de sobreposição da imagem em relação ao
conceito; me lembro de um poema dele que
fala mais ou menos assim: “passava um rio
atrás da minha casa e eu sempre achei que
era uma cobra de vidro, aí um dia um homem
chegou e falou para mim que aquilo se cha-
mava enseada”. Pronto: a imagem, o conceito
destruiu a imagem, então eu uso esse poema
do Manoel de Barros, por exemplo, para falar
em relação a Nietzsche, que diz que a verda-
de e o conceito são metáforas que se esquece-
ram da sua origem.

FRIEDRICH
WILHELM
NIETZSCHE
( 1844 - 1900 )
Foi fi lósofo, fi lólogo,
crítico cultural, poeta e
compositor prussiano
do século XIX, nascido
na atual Alemanha. Ele
escreveu vários textos
críticos sobre a religião,
a moral, a cultura
contemporânea, fi losofi a
e ciência, exibindo uma
predileção por metáfora,
ironia e aforismo.

© FRIEDRICH HARTMANN / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG 1

© SILANION / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG 2
PLATÃO
Foi fi lósofo e matemático
no período clássico da
Grécia Antiga, autor
de diversos diálogos
fi losófi cos e fundador da
Academia em Atenas, a
primeira instituição de
educação superior do
mundo. Platão foi ainda o
introdutor do método de
diálogo em fi losofi a com
sua obra A República.

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