Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 11

Seus textos são razão e sensibilidade...
Gostaria que falasse um pouquinho
de cada livro, como foi concebido, sua
visão sobre a sua obra.
O primeiro, Violeta velha e outras flores,
é uma coletânea com 22 contos, resultado de
uma vida inteira. Então o primeiro livro sem-
pre você tem mais opções, os textos são tam-
bém muito díspares porque são de diferentes
épocas da sua vida, e eu fiz um filtro e cheguei
nesses 22 contos. É um livro pelo qual tenho
muito carinho, justamente porque é o pri-
meiro e também porque teve uma recepção
boa. Ninguém conhecia a minha escrita e de
repente saíram várias resenhas em diversos
veículos de âmbito nacional. No primeiro ano
ele vendeu mil exemplares, que é um número
bastante elevado para uma editora pequena e
para um autor iniciante. Ele me abriu as possi-
bilidades do mundo literário.
E aí eu já estava, digamos, com a necessida-
de de um texto maior, de mais fôlego, então me
aventurei no romance mesmo antes da publi-
cação do Violeta. Em 2014 eu já estava na feitu-
ra de O lado imóvel do tempo, cujo protagonis-
ta é Salvador dos Santos, um homem de seten-
ta anos, bancário aposentado, poeta frustrado,
que percebe que a morte se aproxima; quando
ele toma esse choque de realidade, entra em
desespero, achando que não fez nada de gran-
de uso ao longo da vida e que brevemente será
esquecido. Isso o apavora, de maneira muito
veemente, e o livro passa por uma vibração
dele, de como se tornar imortal, como deixar o
seu nome na história, então encontra uma so-
lução: a única solução é se tornar um assassino
em série e começa a matar as pessoas para ter
o seu nome lembrado.
E o terceiro livro se chama Amortalha, jun-
ção de contos de amor e morte, e acho que é o
texto mais maduro que tenho, porque, óbvio,
eu já tinha publicado um de contos, já tinha
publicado um romance, e aí contos me pare-
cem com uma linguagem mais autoral, mais
autêntica, mais genuína. A minha intenção foi
realmente escrever um livro mais filosófico, e
trato de questões sobretudo de amor e morte,
mas de forma que esses assuntos são também
uma espécie de acerto de contas, porque tem

um conto para o meu pai, para a minha mãe,
um conto que trata da minha adolescência,
que foi muito marcada pela religiosidade –
aliás, esse é um aspecto que está presente em
vários contos meus, esse embate interno exis-
tencial entre as coisas e a religião, porque eu
fui criado em uma família católica, fui coroi-
nha por muitos anos, depois fui me libertando
disso, sobretudo depois que fiz Filosofia. Então,
vários contos meus trabalham esse aspecto do
embate entre o eterno e o efêmero, entre o pas-
sageiro e o que dura. E o último conto desse
livro eu escrevi para minha filha, que, no mo-
mento da escrita, estava na barriga da minha
esposa, e ele me emocionou bastante, chama-
-se A gestação de um pai.

Você trabalha um pouco de memória, e
memória era algo até pouco tempo atrás
esquecida na nossa literatura, ou pelo
menos não era consumida em grandes
fatias. Como você vê isso em sua obra?
Essa parte de memória o impulsiona
para outras escritas?
Eu tenho um sentimento muito forte pelos
contos que trabalham com isso, e no fim das
contas se pensarmos o que nós escrevemos, so-
bretudo em literatura, a fonte primária é a me-
mória. Mas acontece que não existe memória
pura mesmo, uma história clara na sua cabeça.
Evidentemente, as lacunas são preenchidas
pela imaginação. Então acho que a literatura
é um pouco dessa mescla entre imaginação e
memória, às vezes de maneira consciente, às
vezes de maneira inconsciente, e é bom que
nós não nos lembremos absolutamente de
tudo. Fala-se inclusive que uma das dádivas do
ser humano diz respeito a essas lacunas que
conseguimos criar. É por causa dessas lacunas
que somos capazes de fazer arte, é por causa
dessas lacunas que a vida vale a pena, porque
existem alguns esquecimentos que são muito
saudáveis para o ser humano.
Aliás, o LACAN 5 , um grande psicanalista do
século XX, tem uma frase sobre as três grandes
fraturas da história da humanidade: a primeira
delas teria acontecido com Copérnico astrôno-
mo e matemático, que afirmou que o homem
não é o centro do universo como ele acreditava.

© \NELSON BRAZUKA / \COMMONS.WIKIMEDIA.ORG
FERNANDO ANTÓNIO
NOGUEIRA PESSOA
Foi poeta, filósofo,
dramaturgo,
ensaísta, tradutor,
publicitário, astrólogo,
inventor, empresário,
correspondente comercial,
crítico literário e
comentarista político
português. Fernando
Pessoa é o mais universal
poeta português.

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4 OTTO LARA
RESENDE
( 1922 - 1992 )
Foi um escritor e
jornalista brasileiro,
eleito membro da
Academia Brasileira
de Letras, para a
cadeira nº 39, autor,
entre outros, do
livro de contos Boca
do Inferno. A frase
utilizada na entrevista
faz parte de uma
crônica, Vista cansada:
“Como era ele? Sua
cara? Sua voz? Como
se vestia? Não fazia
a mínima ideia. Em 32
anos, nunca o viu. Para
ser notado, o porteiro
teve que morrer. Se
um dia no seu lugar
estivesse uma girafa,
cumprindo o rito,
pode ser também que
ninguém desse por
sua ausência. O hábito
suja os olhos e lhes
baixa a voltagem. Mas
há sempre o que ver.
Gente, coisas, bichos.
E vemos? Não, não
vemos”.

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