Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
12 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

ENTREVISTA / Matheus Arcaro


A segunda fratura foi com Darwin, um natura-
lista, que diz que o homem não é fruto de uma
entidade suprema metafí sica, mas sim da sim-
ples seleção natural da espécie, e depois o pró-
prio Freud, neurologista e criador da Psicanálise,
seria a terceira fratura na fí sica, já que nem se-
quer ao nosso próprio intelecto, ao nosso pró-
prio ser, nós temos acesso, porque, no fi m das
contas, existe uma camada que é o inconsciente,
responsável por grande parte das nossas ações,
dos nossos afetos, dos nossos pensamentos.

As fraturas, a morte em si... O que mais o
move hoje nesse momento na literatura?
Tem uma frase do FERREIRA GULLAR 6 que é
muito conhecida: ele diz que a arte existe por-
que a vida não basta, mas na verdade ele faz
uma paráfrase do Nietzsche, que tem duas
frases muito importantes nesse contexto: pri-
meira, que a vida só se justifi ca como fenôme-
no estético, e a segunda, que só a arte nos faz
capazes de enfrentar os absurdos e os terrores
da existência. E eu concordo com o Nietzsche,
com o Ferreira Gullar, acho que o que me move
na literatura é a beleza da vida e o terror da
vida, a beleza e o terror, é essa completude que
no fi m das contas são grandes lacunas que pre-
cisam ser preenchidas pela arte. A arte faz com
que o mundo seja respirável, a arte faz com que
o mundo seja ao mesmo tempo belo, e a litera-
tura faz com que nós consigamos vislumbrar
fi ssuras no horror e que consigamos exaltar as
belezas da vida mesmo em coisas triviais.

É um autor e professor de sucesso. Sua
formação em Publicidade e Propaganda
o ajudou nisso de alguma forma?
Eu creio que sim, me ajudou sobretudo em
relação à divulgação on-line, virtual, porque a
partir da divulgação virtual eu consegui espa-
ço nos veículos impressos, como a Revista Cult,
onde saiu nota, ou no Estado de S. Paulo... Mas
a publicidade me ajudou num segundo aspec-
to, que foi o de fazer uma simbiose com a fi -
losofi a. Então, eu tenho na minha linguagem
literária uma espécie de rapidez e de frases
curtas em relação ao que eu herdei da minha
vocação para redação publicitária e com a pro-
fundidade dos temas fi losófi cos da minha se-

gunda formação. Acredito que a “mistura” des-
ses dois âmbitos emergem na minha literatura
e eu acho que o resultado é bem bacana.

Você é um cara ligado nas redes
sociais. Em seus posts encontra-se
seu pensamento sobre a atualidade,
principalmente sobre esse cenário
político que se desenha para a educação
e a cultura, bem preocupante...
Pois é. Costumo dizer que o Bolsonaro não
é a causa, ele é a consequência, que signifi ca
que ele é o sintoma das coisas que já existiam
no Brasil, mas estavam escondidas. Sobretudo
porque as minorias que na verdade são maioria
ganharam voz nos últimos tempos. As mulheres
conquistaram muitos espaços, os negros, as co-
munidades LGBT, os indígenas, enfi m, mesmo
que não tenha sido a contento foi o período da
história do Brasil que mais ofereceu oportuni-
dades para essas pessoas e também para os des-
privilegiados do ponto de vista econômico. Pois
bem, acontece que a classe média e essa elite, ou
que se acha elite, estavam digamos no armário e
agora o presidente e os seus ministros, o gover-
no de modo geral, alguns governadores, são a
caixa de ressonância desse tipo de gente. Então
todo tipo de preconceito que já estava dentro das
pessoas agora tem a legitimidade de ser. Há uma
frase muito interessante do MILLÔR FERNANDES 7
na época da ditadura que dizia mais ou menos
assim: que ele não tinha medo do general, ele ti-
nha medo do soldado da esquina, do guardinha
da esquina, e é mais ou menos isso mesmo. Há
uma constituição e há instituições sólidas no
Brasil que podem deter algum tipo de autorita-
rismo. Talvez o problema não esteja no centro do
poder, talvez o problema esteja na legitimação e
na chancela das pessoas comuns, que se dizem
defensoras da moral e dos costumes, mas na ver-
dade pregam o ódio, o preconceito, não querem
dividir o avião com a classe baixa, não querem
frequentar os mesmos locais que estavam fre-
quentando em governos anteriores... No fi m das
contas, todo esse enfrentamento em relação às
Ciências Humanas, a Filosofi a e Sociologia so-
bretudo, é uma espécie de tentativa de fazer com
que nós não mais nos aprofundemos sobre as
questões centrais do Brasil.

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JACQUES-MARIE
ÉMILE LACAN
( 1901 - 1981 )
Foi um psicanalista
francês que se
orientou em direção à
Psiquiatria. Passou a
integrar a Sociedade
Psicanalítica de
Paris em 1934.
Teve contato com
a psicanálise através
do surrealismo e,
a partir de 1951,
opondo-se aos
pós-freudianos
que promoveram a
Psicologia do Ego,
propõe um retorno
a Freud.

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FERREIRA GULLAR 6
( 1930 - 2016 )
Pseudônimo de José
Ribamar Ferreira, foi
um escritor, poeta,
crítico de arte, biógrafo,
tradutor, memorialista
e ensaísta brasileiro e
um dos fundadores do
neoconcretismo.

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