Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

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18 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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igualmente as características sociais,
culturais e econômicas que infl uenciam
na construção do discurso a partir de
uma determinada visão de mundo.
Se o trabalho de LABOV 4 descrevia
principalmente o discurso masculino,
a seriedade acadêmica de linguistas
como as anteriormente citadas contri-
buiu de maneira signifi cativa para que
pudéssemos fazer uma leitura do diale-
to social feminino como uma variedade
linguística sobre a qual interagem di-
versos fatores. (Ver box Dom de Iludir)
As coerções sociais às quais as mu-
lheres foram expostas ao longo dos anos
contribuem, em certa medida, para que
se faça uma leitura do porquê de as mu-
lheres como grupo social ter suas pró-
prias características linguísticas.

UM POUCO DE HISTÓRIA
A noção de que a linguagem femini-
na é diferente da masculina em algumas
comunidades de fala sempre foi percep-
tível. A mulher como grupo social sem-
pre teve suas próprias características
linguísticas. No entanto, só a partir da
década de 70 do século passado é que a
linguagem feminina recebeu mais aten-
ção dos linguistas, sociólogos e psicólogos.
A partir daí a fala feminina foi utilizada
como material de estudo, tendo em vista des-
crever as diferenças de gênero a partir do fenô-
meno da linguagem.
Disso resulta que a linguagem e os estudos
de gênero hoje são um subcampo da sociolin-
guística, que busca a partir da diferenciação
linguística de pronúncia, vocabulário, gramáti-
ca e dos padrões de interação oral de homens
e mulheres estudar a linguagem feminina fala-
da e escrita em suas especifi cidades.
Numerosos documentos atestam o quan-
to as vozes femininas foram abafadas ao lon-
go do tempo e o quanto é necessário que elas
tenham garantido o seu LUGAR DE FALA 5 em um
mundo cada vez mais diverso e diversifi cado.
A particularidade da linguagem feminina,
como o uso de intensifi cadores, os adjetivos
extravagantes, os expletivos, os eufemismos e
as expressões educadas, é mais do que uma

característica inata e expõe uma face da his-
tória que muitos querem ocultar e em casos
extremos negar.
Por estar intimamente relacionada às atitu-
des sociais, a linguagem refl ete o pensamento de
seus criadores e usuários, revelando seus com-
portamentos e valores culturais. Nesse sentido, o
status social da mulher sempre foi determinante
para a avaliação que se fez ao longo do tempo de
sua linguagem.
Fatores sociais como o papel sexual que
elas desempenharam ao longo do tempo e a
prevalência do gênero masculino na constru-
ção das relações sociais foram determinantes
na construção dos paradigmas que orientaram
os estudos linguísticos da fala feminina ao lon-
go do tempo.
A divisão do trabalho estabelecida pelo
capitalismo industrializado promoveu uma
separação na localização das atividades de ho-

Embora os padrões de linguagem nos quais as
mulheres foram socializadas, com frequência,
as condicionem à hesitação e à insegurança
levando-as a produzir um discurso que muitas
vezes busca a delicadeza e a hipercorreção, é
possível, através da autoafi rmação de valores,
romper com os paradigmas ditados pela socia-
lização dos papéis sociais, como se verifi ca nos
versos transcritos a seguir, da canção Dom de
Iludir, de Caetano Veloso.

Não me venha falar da malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é
Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim
Cale a boca, não cale na boca notícia ruim

Você sabe explicar
Você sabe entender
Tudo bem
Você está, você é
Você faz, você quer
Você tem
Você diz a verdade
E a verdade é o seu dom de iludir
Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir?
Caetano Veloso. Dom de Iludir. Totalmente
demais, Lp, Philips Records, 1986.

LÍNGUA VIVA/ Diferenças linguísticas


PAMELA FISHMAN
É linguista e professora
da Universidade da
Califórnia, em Santa
Bárbara. Desenvolve
estudos sobre a
interação entre
homem e mulher na
conversação cotidiana
e de que maneira essa
interação reproduz as
relações de poder e
reafi rma a identidade
de gênero.

DALE SPENDER
É estudiosa da
linguagem de
origem australiana,
analisa de que forma
nas sociedades
patriarcais os
homens controlam
a linguagem de
maneira a que esta
trabalhe ao seu
favor. Segundo ela,
“A linguagem ajuda a
formar os limites da
nossa realidade”.

DOM DE ILUDIR


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