Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 19

SOBRE O AUTOR
AVRAM ASCOT é heterônimo
de Abrahão Costa de Freitas.

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

mens e mulheres. Os homens foram circuns-
tancial e ideologicamente definidos pela esfera
pública, enquanto as mulheres eram relegadas
à esfera doméstica.
Como a relação entre linguagem e cultura
sempre foi interativa, isso levou a alguns des-
vios epistemológicos a ponto de alguns autores
apresentarem a linguagem feminina como uma
espécie de “aberração” da linguagem masculina.
As primeiras avaliações sobre a linguagem da
mulher no ocidente estavam intimamente liga-
das à cultura da discriminação e do preconceito.
No entanto, ao analisarem cuidadosamente
os estilos linguísticos e a PRAGMÁTICA 6 da comuni-
cação de homens e mulheres, os sociolinguistas
puderam compreender de que maneira a cultura
das mulheres esteve sempre, historicamente, su-

bordinada à cultura masculina e quais foram as
consequências dessa subordinação para a cria-
ção de uma cultura de gênero, que sempre viu o
universo feminino como a manifestação de uma
subcultura de valores distorcidos.
Ao enfocar a linguagem masculina como
uma variante de prestígio socialmente valo-
rizada, os estudos sociolinguísticos abriram
caminho para uma discussão cuja fertilidade
tem sido dada a quem sempre foi excluída não
apenas uma voz, mas também um lugar de
fala cuja relevância ainda está em construção
e deve, por isso mesmo, ter cada vez mais es-
paço tanto na universidade quanto no mundo
das relações pessoais, para que da intelectual à
mulher do povo todos e todas possam dar voz
àquilo em que acreditam.

Pra que mentir
se tu ainda não tens
esse dom de saber iludir?
Pra quê? Pra que mentir
se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir se tu ainda não tens a
malícia de toda mulher?
Pra que mentir se eu sei que gostas de
outro que te diz que não te quer?
Pra que mentir tanto assim se tu sabes
que eu sei que tu não gostas de mim?
Tu sabes que eu te quero apesar de ser
traído pelo teu ódio sincero ou por teu
amor fingido

Pra que mentir se tu ainda não tens a
malícia de toda mulher?
Pra que mentir se eu sei que gostas de
outro que te diz que não te quer?
Noel Rosa e Vadico. Pra que mentir. Victor, 1936.

Escrita em 1986, como resposta à canção Pra
que mentir, de Noel Rosa, escrita cinquenta
anos antes, a canção de Caetano revela um
eu lírico feminino cuja firmeza põe em xeque
aspectos da vida cotidiana que raramente são
contestados e revelam questões que vão muito
além dos usos sociais da linguagem. Os versos
de Noel (ver canção na íntegra abaixo) eviden-
ciam que as diferenças entre a fala masculina e
feminina não se restringem simplesmente a ca-
racterísticas gramaticais. Há na fala do eu lírico
de Pra que mentir um tom e um andamento que
direcionam todo o vocabulário à construção de
um discurso no qual as atitudes atribuídas à
mulher evidenciam uma orientação de valores
socioculturais muito bem delineados.
O papel sexual do homem e o sistema domi-
nante de gênero da época ficam claros em
expressões como “... tu ainda não tens a malícia
de toda mulher” e “apesar de traído/ pelo teu
ódio sincero ou pelo teu amor fingido”. Em Dom
de iludir essa retórica é contestada a partir da
própria orientação de valores que norteia o
homem em Pra que mentir, quando diz “Você
sabe explicar/ Você sabe entender/ Tudo bem/
Você está, você é/ Você faz, você quer/ Você
tem/ Você diz a verdade” a mulher confronta o
homem com seus próprios valores e traz à tona
a questão da socialização dos papéis sexuais
vividos por homens e mulheres em um dado
contexto sociocultural.

WILLIAM LABOV
É um linguista
estadunidense,
amplamente
considerado o
fundador da
sociolinguística
variacionista.

LUGAR DE FALA
É uma teoria derivada
do movimento feminista
norte-americano. É uma
perspectiva teórica do
movimento feminista
que argumenta que o
conhecimento decorre
da posição social do
indivíduo.

PRAGMÁTICA
É o ramo da
linguística que
estuda a linguagem
no contexto de seu
uso na comunicação.

6

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4

COATES, Jennifer. Women,
man and language, 2 edn,
London, Longman, 1996.
COSTA. Rodriana Dias
Coelho. OLIVEIRA. Christiane
Cunha de Oliveira. A
distinção entre as falas
masculina e feminina em
algumas línguas da família
Jê. http://www.sbpcnet.org.
br/livro/63ra/conpeex/pivic/
trabalhos/. Acessado em 11
de maio de 2019.
SAPIR, E. Linguagem. São
Paulo: Ed. Perspectiva, s/d,
coleção estudos.
TANNEN, Deborah. You just
don’t understand: Women
and Men in Conversations,
London, Virago, 1991.

Apesar do tempo que as separa, o diá-
logo intertextual estabelecido entre as
duas canções pode servir como ponto de
partida para a análise do sistema domi-
nante de práticas culturais na sociedade
contemporânea. Do ponto de vista socio-
linguístico, fornece elementos bastantes
para uma multiplicidade de modalidades
de expressão da fala masculina e femini-
na em uma perspectiva histórica.

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