Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1

Sarará Crioulinha


Texto de Jussara Saraíba

JUSSARA SARAÍBA é jornalista e contadora de histórias.

Ponto de Encontro


LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 5

D


ia com sol fraco e ar meio geladinho. Como eu gos-
to, principalmente para uma caminhada no bairro,
ver “a moda”, como dizia meu avô. Logo na saída,
encontro minha pequena vizinha, Jéssica, seis anos,
nascida para se deslumbrar com o mundo. Já contei aqui que
ela aprendeu rapidinho a ler só para escrever suas histórias. A
novidade dessa vez tem uma dimensão maior: a garota anda
emburrada com a “vontade do Senhor”, como garante sua
mãe. O que aconteceu, pergunto, mal me contendo ante a
curiosidade que sempre sinto em relação às suas respostas.
“Quero ser preta”, larga na lata. “Como assim?”, continuo o
papo, tentando não cair na gargalhada. Jéssica é branquelinha,
tem olhos claros, entre o azul cristalino e o verde viscoso, ca-
belos castanhos com tons ruivos, uma combinação explosiva,
principalmente com as sardinhas desafi adoras. “É que tudo
de preto eu acho mais legal. Minha mãe diz que eu não posso
falar preto, mas não é preto? A música do preto eu gosto mais,
sabe aquela que fala sarará, eu acho a mais linda, as pretinhas
dançam mais e brincam mais lá na minha escola, mesmo que
sejam só duas, mas elas estão sempre se divertindo e minhas
amigas iguais a mim só querem conversar ou fi car no celular.
As roupas que eu vejo na televisão das pretas também são
mais bonitas, mais coloridas...”. Falo para ela tomar fôlego,
mas é o que menos quer fazer no momento.
“Por que eu tinha que nascer assim tão desbotada?”, per-
gunta me atirando aquele olhar fuzilante. Explico primeiro que
ela não era “desbotada”, e que, para ela nascer preta, os pais
ou avós, bisavós também tinham que ser assim, questão de
ancestralidade. “Que palavra difícil, o que quer dizer?”. Não
deixa por menos. Digo que se trata da história da família dela,
dos antepassados. “E não tem nenhum preto na minha famí-
lia?”. Respondo que isso ela tem que ver com a mãe e o pai
dela. Ela para por segundos, fi ca pensativa e revela seu grande
medo: “É que quero escrever uma história com gente preta e
não sei se vou conseguir, porque não sei como ser preta”.
Aquilo me comoveu. A pequena menina, nessa frase, expôs
uma verdade impactante: “Não sei como ser preta”. Assim
como não dá para todos saberem “ser” homossexuais, refu-
giados, trans ou sei lá o quê. Tentei acalmá-la e falei sobre
a desimportância da cor da pele, da raça, da textura dos

cabelos, falei que o importante, de fato, é a humanidade que
está dentro das pessoas, e isso ela tinha de sobra. Contei do
mundo colorido de gentes por aí, dos povos se misturando, da
beleza que era isso. Ela gostou, mas mesmo assim replicou:
“Mas como faço para escrever uma história com gente preta?”.
Dou a dica de ela escrever como ela mesma, a garota quase
ruivinha e cheia de sardas que gosta de um monte de coisas
diferentes, até de crianças diferentes dela na aparência, mas
que isso não impede que elas sejam amigas. Suas sardas
brilharam como estrelinhas: “Já sei, vou ser a melhor amiga da
Zuka, que é muito inteligente e já está no terceiro ano. Vou ser
na história, mas vou ver se ela também quer ser minha amiga
no mundo de verdade”. Dou-lhe um abraço e afi rmo que claro
que ela gostaria de ser. E ela termina: “Vai ser muito ‘da hora’,
será que ela tem roupas coloridas pra me emprestar?”.

“É que tudo de
preto eu acho
mais legal.
Minha mãe
diz que eu não
posso falar
preto, mas
não é preto?”

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