50 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURALITERATURA ESTRANGEIRA / Realismo fantástico
por Jussara Saraiba
O JOGO DA
LIBERDADE
Com uma literatura revolucionária e
complexa, o enigma ocupa posição central
na obra de Julio Cortázar, autor de O Jogo
da Amarelinha e Bestiário, entre outros,
levando o leitor a questionamentos para
além da sua escrita e das leis da razão
J
ulio Cortázar era um escritor excên-
trico. Argentino radicado na Europa,
dizia que só descentrado ali (na
França) podia alcançar um centro,
uma harmonia, mas ao custo de uma ruptura.
Vale dizer que o autor procurava estabelecer
um equilíbrio entre a sua liberdade artística
e o compromisso com as ideias revolucioná-
rias. Na segunda metade do século XX, vários
países latino-americanos viviam momentos
políticos conturbados, com a ditadura co-
mandando o “pode, não pode” e a literatura
acompanhando isso, sendo que os autores fa-
voráveis aos movimentos revolucionários, in-
timamente ligados com a Revolução Cubana
e com os seus ideais socialistas, dividiam-se
sobre a abordagem que a arte deveria adotar
para ajudar essa revolução. A divergência dasposições entre Cortázar e os que se conside-
ravam revolucionários comprometidos não se
situava nos ideais revolucionários ou socialis-
tas, mas sim na forma de descrevê-los ou re-
presentar na literatura.
A lição que Cortázar deixa talvez seja a des-
sa ruptura, uma libertação formal da recusa a
compactuar com ordens externas, extemporâ-
neas, arbitrárias, mesmo de seus pares, ordens
que não sejam rigorosamente as suas. Eis tal-
vez a dimensão de seu legado: muito mais que
suas belas obras libertas das formas arcaicas, o
exemplo maior de sua liberdade.
Nascido em 1914, na embaixada argentina
de Ixelles, na Bélgica, Cortázar volta com sua
família ao país de origem aos três anos de ida-
de, após a Primeira Guerra Mundial, e passa a
viver em Banfi eld, uma das cidades-satélites de© NADEZHDA1906 / ISTOCKPHOTO.COMCP-LPT77_50-52_LITERATURA_ESTRANG_vs2.indd 50 29/05/2019 12:06