Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
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INTERPRETAÇÃO / Poesia contemporânea


56 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

ORA, GARÇOM, VÁ SE...
Esse vaivém — essa gangorra que cria, an-
tes, desequilíbrios e instabilidades e não tanto
assim o som ondulante que vem das ondas do
mar — mais nunca deixou de haver. Hoje, sem
máscaras nem pudores, é possível ler a cotidia-
nidade mais fremente nos versos de ANGÉLICA
FREITAS 4 , no seu, por exemplo, poema Love me
(que está no gostoso livro Rilke shake, de 2007),
em que iniciais minúsculas começam substan-
tivos próprios ou, após um ponto, a nova frase,
a assinalar, com isso, a queda de certa moral
gramatical e certa moral social também:

“você no bar de um hotel de quinta
em paris ouvindo polnareff
com um daiquiri na mão

na mesa uma gérbera dá o último
suspiro, as cortinas de veludo
já eram, o garçom

chama a sua atenção. você
perdida je suis fou de vous,
ele traz outro drinque e
sorri, você pensa aqui
não é cancun”

Angélica Freitas, antenadíssima, tratou a
realidade como hoje em dia merece ser trata-
da: tudo é banal e comum demais. A pancada
desferida no sublime, açoitado pela poesia de
Baudelaire, toma novas formas: o EU LÍRICO 5 ,
seriamente desassuntado e levemente protegi-
do por certa dose de distanciamento, observa,
num outro projetado, sua própria AUREA MEDIO-
CRITAS 6 (não naquele sentido, feliz, dos árcades,

mas no sentido moderno mesmo, blasé), sem
saber o que fazer, vendo-se a si nesse outro,
instalado “no bar de um hotel de quinta em pa-
ris”, tomando “um daiquiri”, enquanto ouve o
massifi cado “POLNAREFF” 7 , coitado do eu lírico! E,
como um enjeitado da sorte, sente-se “perdida”
(sim, esse eu lírico refl ete-se numa mulher: al-
ter ego da autora que lhe dá voz?), tão perdida
que lança uma ofensa pornográfi ca ao garçom,
que não tem nada a ver com isso. Ouviu o pala-
vrão, leitor? Repare, ouça, especialmente a pas-
sagem “fou de vous”, nesse francês traidor que,
em português, pela união desses vocábulos, dá
o nosso “foder”. Elegante, não? Mas sincera!
O enjoo da vida faz a alma enobrecida (se
essa alma for mesmo enobrecida) soltar um
palavrão. Nem que seja com a ajuda do fran-
cês. E a minimização da realidade — sempre
diminuta ela, desimportante aos olhos do poe-
ta contemporâneo, embora seja a sua matéria
indispensável — aparece delineada nos enjam-
bements: “na mesa uma gérbera dá o último /
suspiro, as cortinas de veludo / já eram” ou, en-
tão, “ele traz outro drinque e / sorri, você pensa
aqui”. Veja, leitor, que, ao deixar no ar, em sus-
penso, o adjetivo “último”, Angélica Freitas não
pensou duas vezes em salientar que se está no
grau último das forças e não adianta, portanto,
insistir em recuperá-las. O vocábulo “suspiro”,
que inicia o verso seguinte, é o próprio suspiro
do eu lírico, que não descreve, mas atua, sus-
pirando. Já ao deixar no ar aquele minúsculo
conectivo “e”, que, dois versos depois, ressoa na
rima com “aqui”, imita, muito mimeticamente
falando, o suspiro, ou, se assim o pressentir-
mos, o grito fi no, mas quase inaudível, de quem
já se encontra extenuado.
Poesia, meu bem, tem dessas coisas! Ela fala
e repercute pelos sons, mais pelos sons do que
pelas palavras efetivamente inscritas no pa-
pel. O som, que parece morrer na goela, como
se vê no poema Love me (esse pedido que não
é ouvido por ninguém, nem pelo garçom, que
ela manda se foder), é sombra de sombras. Um
eu lírico perdido na vida e no bar de um hotel
de quinta em Paris... (logo em Paris! cuja cate-
dral, símbolo máximo da cristandade e da arte
medieva gótica, ardeu em pleno crepúsculo, fa-
zendo as cores das chamas confundir-se com

AS FLORES
DO MAL
é um livro escrito por
Charles Baudelaire,
considerado um marco
da poesia moderna e
simbolista. As Flores
do Mal reúne, de modo
exemplar, uma série
de motivos da obra
do poeta: a queda; a
expulsão do paraíso;
o amor; o erotismo; a
decadência; a morte; o
tempo; o exílio e o tédio.

CHARLES-PIERRE BAUDELAIRE
( 1821 - 1867 )
Foi um poeta boêmio e teórico da arte francesa. É
considerado um dos precursores do simbolismo e
reconhecido internacionalmente como o fundador
da tradição moderna em poesia, juntamente com
o poeta americano e criador dos versos livres
Walt Whitman, embora tenha se relacionado com
diversas escolas artísticas.

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VEZO
SUBLIMANTE
hábito sublimador.

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