Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1

INTERPRETAÇÃO / Poesia contemporânea


58 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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SOBRE O AUTOR

que a mistifi quem e sim com nuanças que a
naturalizam, como se pode ver neste poema
da coletânea Um Útero é do tamanho de um
punho, de 2013:

“se estou na argentina sou uma poeta
argentina
se leio a argentina como um grande livro,
se como
na argentina, se escrevo na argentina e
defeco
na argentina sou uma poeta argentina
e não é que me esqueça ou que me importe
de ser brasileira”

A paisagem, na poeta, é-lhe natural porque
é movência pura; e, assim, não se autodeclara
aquela lagoa que borda Pelotas. É cultura e so-
ciedade, é circunstância, é a mulher que, des-
penteada ou não, é mulher movente. Por seu
turno, Djavan, falando do cotidiano do amor,
não deixa de sublimá-lo — mas não, evidente-
mente, com o tom eloquente e elevado dos poe-
tas da tradição, a esta altura já temperada pela
dissonância e rupturas com que os modernos
trataram o próprio sublime.

“Com medo,
Eu chamei pra dançar (...)
Vejo você levantar,
Penso: vou abraçar
O amor.
Não sei se é assim
Que o amor nasce,
Mas sei que perambular
Por beijos sem desejo
Não é luz — é o breu.”

Nesse poema, Reverberou (do disco Rua dos
Amores, de 2012), que eu vejo como o contra-
ponto de Esquinas, o eu lírico de Djavan não
tem à primeira vista a espontaneidade terra a
terra dos eus líricos de Angélica Freitas. Sem
deixar de ser atual, por sua linguagem simples
e corriqueira, cria, no entanto, uma atmosfera
que beira o sublime e lhe escapa ao mesmo
tempo. Se a razão (“Mas sei que perambu-
lar / Por beijos sem desejo / Não é luz — é o
breu”) informa que o amor vai além das con-
tingências, superando-as (é luz; não é breu), a

ROBERTO SARMENTO LIMA
é professor doutor da
Universidade Federal de
Alagoas. Autor do livro O
Narrador ou o Pai Fracassado:
Revisão Crítica e Modernidade
em Vidas Secas, publicado
em 2015 pela OmniScriptum/
Novas Edições Acadêmicas,
em Saarbrücken, Alemanha.
([email protected]).

imaginação poética altera, porém, a noção de
amor, reduzido agora a um abraço, a contatos
fí sicos — fugazes, casuais — que a razão já não
controla. Não à toa, como está em Esquinas,
a realização do desejo impôs sua condição:
foi-se “toda a paz que um dia o desejo levou”.
Instaurado assim o desejo — morte do amor e
nascimento da força lírica na contemporanei-
dade, a expressão do eu refaz a nota dissonan-
te da linguagem mais espontânea em meio à
convivência dos contrários:

“E por ser ela a luz que me renasce,
No instante em que eu a enlaçar,
Socorro! Posso pirar
Com o calor do corpo dela.
Meu Deus!”

É essa atmosfera que garante, enfi m, a res-
sublimação — mas por meio da dessublima-
ção interveniente e súbita — do universo do
poema de Djavan. Se em LONGINO 8 , naquele seu
Tratado do século I da nossa era, e em KANT 9 ,
em Observações acerca do belo e do sublime,
de 1764, é possível ver o sublime como uma
categoria poética que torna transcendente o
natural, a poesia contemporânea redimensio-
na essa fórmula, não emulando mais a tradi-
ção, mas atualizando tal redimensionamento.
O natural (“o calor do corpo dela”) mistura-se
aos embates da razão (“por ser ela a luz que
me renasce”). Luz do pensamento e calor do
corpo: espiritualização e desejo consumado.
Em síntese, os opostos conciliam-se nos ver-
sos djavanianos.
A morfologia do amor desemboca — ines-
peradamente, em súbita desarmonia com o
que foi dito nos versos anteriores — nesse gri-
to espontâneo e aparentemente intuitivo de
“socorro!” e na expressão popular “posso pirar”,
que fere o enobrecimento da linguagem como
ela vinha se comportando desde o primeiro
verso. Ao aproximar-se da sintaxe de Angélica
Freitas, situação em que fi cam defi nitivamen-
te claros a heterogeneidade da linguagem
contemporânea e o vaivém da poesia, no seu
regime de trocas de registros, o texto de Djavan
revela que, na verdade, o que há são conexões
díspares, desencontradas. Sim, mas singular-
mente possíveis.

CAIO CÁSSIO
LONGINO
(ca. 213 - ca. 273)
Foi um dos discípulos do
neoplatonista Amônio
Sacas, tendo mantido
relações estreitas
com o fundador do
neoplatonismo, Plotino,
e seu círculo, embora
o próprio Plotino não
o tenha considerado
fi lósofo, mas erudito,
e o também fi losofo
neoplatino Porfírio, que
foi por algum tempo
discípulo seu, o estimava
sobretudo como crítico –
“o maior de nossa época”


  • e mestre de retórica.


IMMANUEL KANT
( 1724 - 1804 )
Foi um fi lósofo
prussiano. Amplamente
considerado como o
principal fi lósofo da era
moderna, Kant operou,
na epistemologia,
uma síntese entre
o racionalismo
continental e a tradição
empírica inglesa.

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