National Geographic Portugal - Edição 220 (2019-07)

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seu centro histórico. Os bairros periféricos são,
em grande parte, compostos por lama e palha,
com mais de 130 mil habitantes, sem contar com
os numerosos clientes do Patrão que por ali an-
dam, de passagem.
Encontrámos alguns deles atrás de muros
construídos em terra, passando o tempo sossega-
damente em quartos escondidos, aguardando a
caravana de segunda-feira. Quatro rapazes, com
15 a 18 anos, provenientes do Burkina Faso, do
Mali e da Costa do Marfim, concentravam a aten-
ção num pequeno televisor. Um homem magro,
de 50 anos, originário dos Camarões, esperan-
çoso de se reunir à mulher na Alemanha, mas
por ora aguardando numa sala sem luz, com as
paredes forradas a graffitti de outros que por ali
passaram: Ezekiel. Tala. Cherif Kante. Que Deus
nos ajude a todos. Dois irmãos de uma aldeia do
Burkina Faso, magros, mas com dentes impe-
cáveis, impecavelmente ingénuos: não tinham
frequentado a escola, não sabiam que idade ti-
nham, tinham um irmão à espera na Argélia e só
traziam uma ou duas mudas de roupa, na espe-
rança de chegarem, de uma forma ou de outra, a
um sítio chamado Europa.
Na manhã do dia anterior à partida da carava-
na, o Patrão conduziu-me ao interior de um pátio
cheio de peças de automóvel enferrujadas, onde
cerca de duas dezenas de jovens africanos – na sua
maioria, mas não todos, do Níger – dormiam ou
fumavam à sombra. Um jovem de 18 anos natural
de Agadez, chamado Mohammed, reparava uma
avaria no motor da carrinha. Regressara da Líbia
com a caravana há escassas duas horas e estava
visivelmente atordoado. No dia seguinte, parti-
ria de novo para norte. Mohammed explicou que
fazia este circuito todas as semanas desde os 15
anos. Viam-se buracos de bala no banco do passa-
geiro e no guarda-lamas traseiro esquerdo da sua
carrinha maltratada. Fora assaltado no deserto
quatro vezes nos últimos três anos. Mohammed
assegurou-me que essas experiências o tinham
aterrorizado. Antes fora mecânico de automóveis
e ainda fazia trabalhos de reparação, disse, antes
de acrescentar: “Pagam mais aqui.”
O motorista da carrinha, os seus passageiros
nervosos e até o Patrão – feitas as contas, as suas
histórias convergem. A agitação é a narrativa du-
radoura da África Ocidental. Trata-se de uma re-
gião avassalada pelo desespero económico, um
crescimento drástico da população, a degradação
ambiental, a instabilidade política e a violência
crescente. Está prestes a tornar-se ingovernável.

Antes de chegarem ao posto de controlo, as car-
rinhas obtêm documentos de autorização na esta-
ção de autocarros de Agadez, recebendo-os de um
funcionário da cidade, que, por acaso, é o Patrão.
Pagamentos feitos. Documentos assinados. Olhos
virados para o outro lado. E a viagem começa.
“Conhecem-me em todo o lado”, declara. “Até
na Internet se encontram fotografias do Patrão
com imigrantes.” Ele facilita a viagem tran-
saariana de Agadez à cidade líbia de Sabha. De
seguida, contrata um homólogo na Líbia para
guiar a comitiva de Sabha a Trípoli e outro ainda
para os transportar pelo Mediterrâneo até ao Oci-
dente. Seja em Itália, nos Estados Unidos, numa
cela prisional, abandonados à morte no deserto
ou afogados no mar, o destino final destes ho-
mens já não compete ao Patrão.
Ainda assim, creio que não pressinto apenas
gabarolice quando o escuto evocar, com orgulho,
a cliente que viajou dos Camarões a Agadez e
chegou à Alemanha em menos de duas semanas.
Considerado um criminoso por alguns, o Patrão



  • que não quis revelar o nome, devido à ilegalida-
    de do negócio – prefere considerar-se um funcio-
    nário público altamente empreendedor.


ACIMA DE TUDO, O PATRÃO é um estabilizador
numa região onde poucos desempenham esta fun-
ção. Para os não iniciados, a situação observada no
posto de controlo parece descontrolada. Mas não
está. Há um sistema a funcionar – um sistema com-
preendido por todos e que beneficia muitos. Sendo
ilegal, não é o melhor sistema. Mas é uma solução
criativa para um facto inevitável: o Níger vive
rodeado pelo caos.
Embora seja um país afligido por inúmeros
problemas, como a pobreza profunda, o cres-
cimento demográfico, a escassez de solo arável
agravada pela desertificação e um sistema políti-
co instável, o Níger não é uma incubadora de vio-
lência, ao contrário dos seus vizinhos. É um país
atravessado por pessoas em fuga e não um país
do qual as pessoas fogem. O destino do Níger
depende da sua capacidade para travar o caos,
mantendo uma aparência de ordem, ou sucum-
bir por completo a esse caos.
O papel desempenhado pelo Patrão no drama
do Níger só se tornou evidente para mim num
domingo de manhã quando eu e ele viajámos
durante várias horas através dos “guetos” de
migrantes de Agadez. Trata-se de uma cidade
antiga, de edifícios baixos, com um palácio de
sultões e uma mesquita com quinhentos anos no

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