National Geographic Portugal - Edição 220 (2019-07)

(Antfer) #1
NÍGER,UMPAÍSÀBEIRADAMUDANÇA 101

O imã, de visita ao meu hotel, beberricou uma
Coca-Cola à sombra de um guarda-sol no pátio.
Tinha a voz pesada de tristeza. No entanto, rea-
giu com aspereza quando lhe referi que o movi-
mento ortodoxo islâmico de que faz parte, co-
nhecido como Izala, tem relações históricas com
o fundador do Boko Haram.
“O Alcorão não diz que se devem matar ino-
centes em nome do islão”, sublinhou. O xeque
reconheceu, no entanto, que o caminho do de-
sespero económico ao extremismo violento
tem sido muito percorrido. “Sim, tenho visto
isso”, afirmou. “Ouvimos os miúdos dizerem
que não têm oportunidades. Ouvimo-los nas
ruas, dizendo que talvez essa seja a única opção
que resta.”


Ainda assim, esta opção parece um anátema
aos olhos dos africanos ocidentais, que desenvol-
vem esforços inimagináveis para evitá-la. Seja o
que for que possamos pensar sobre o Patrão e os
seus clientes, a sua tenacidade é assombrosa.
Certo dia de manhã, num abrigo de Agadez que
ajuda os migrantes a regressarem às suas terras
de origem, travei conhecimento com Mohamed,
de 19 anos, oriundo da Costa do Marfim. Trazia
ao pescoço um colar com uma lâmina de barbear
pendurada. Chegara a Agadez há cinco dias.
Sem entrar em pormenores, disse-me que ti-
vera problemas na aldeia e que, apesar de tudo, o
seu sonho sempre fora viver nos Estados Unidos.
Por isso, em Agosto de 2018, Mohamed pagou para
embarcar numa viagem de seis dias numa carri-
nha de caixa aberta até Gao, no Mali. Pelo cami-
nho, ele e mais 19 passageiros foram roubados e
várias das suas garrafas de água foram destruídas
por bandidos. Percorreram a pé os últimos 110
quilómetros através do deserto da Argélia.
Mohamed passou um mês a trabalhar como
mecânico na vila de Bordj Badji Mokhtar. De
seguida, viajou a pé e à boleia até Marrocos, na
esperança de descobrir um modo de fazer a tra-
vessia por mar até Espanha e dali para os EUA.
Em vez disso, as autoridades de imigração
marroquinas prenderam-no durante cinco dias.
Fugiu e regressou à Argélia, onde foi preso du-
rante um curto espaço de tempo, não sem pri-
meiro o aliviarem do pouco dinheiro que lhe res-
tava. Por verem que já não lhes servia para nada,
as autoridades argelinas puseram-no na caixa de
um camião do lixo e recambiaram-no de volta ao
Níger, abandonando-o no deserto. Após vários
dias de caminhada, chegou a Agadez, quatro me-
ses depois de iniciar a sua jornada infrutífera.
Quando acabou de contar a sua história, o
mecânico não parecia especialmente desenco-
rajado. Antes que eu pudesse exprimir a minha
solidariedade, atalhou bruscamente: “Não quero
ir para casa. Já decidi o meu objectivo.”
Mohamed fizera um novo plano. Regressaria
à Costa do Marfim, ganharia dinheiro, obteria
um passaporte e embarcaria num voo directo
para Marrocos, contornando o deserto. Depois
iria para o mar.
“Se Deus me der sorte e eu chegar à Europa
vivo e saudável, acho que vou conseguir”, pre-
viu. No fim da linha, permanecia o objectivo de
um dia chegar aos Estados Unidos, país com um
milhão de veículos a precisar de um mecânico
inteligente. j

Uma equipa da
Força Aérea dos EUA
alcatroa uma pista de
aterragem numa nova
base aérea perto de
Agadez, onde serão
posicionados drones
com armamento.
Centenas de soldados
colocados neste posto
avançado ajudarão no
combate regional contra
os grupos terroristas,
incluindo filiais do
ISIS e da al-Qaeda.
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