Natureza - Edição 378 (2019-07)

(Antfer) #1

EDITORIAL


O


perfume para o pensamento. Pode notar. Os passos
se tornam mais lentos porque a alma manda os olhos
procurarem de onde vem aquela fragrância. Mas os olhos
não sabem ver o perfume. Então, o ar que entra na gente, fundo,
é que rodopia, dá pistas, busca árvores, procura arbustos, caça o
sentido do vento sutil, borrifado com aquele aroma.
A razão, o pensamento, a lembrança da pequena implicância
com seu amor primeiro, que insistia em te atormentar e criar
um microplano de vingança não têm mais importância. Na sua
lembrança, seu amor primeiro sorri pra você um sorriso com
sabor de água-de-colônia. Nem seu nome você lembra mais. Se
pudesse olhar para seu rosto ia ver que sorri. Mas o pensamento
está parado – lembra? – porque é essencial, mais importante que
qualquer coisa no mundo, descobrir de onde vem este cheiro.
Os olhos buscam flores, buscam pétalas, amarelas de
jasmim-manga, multicoloridas de orquídeas, o tubo dourado
do Narcissus poeticus, talvez o mais romântico nome que os
botânicos já inventaram. Em cada uma, uma lembrança.
Da casa da avó que tinha rosas na frente, do beijo na
adolescência perto da dama-da-noite, da pitangueira repleta
de flores brancas no passeio com o pai... num filme alucinado
pelos tubos de ensaio da memória, cada um com um pedacinho
da sua vida arrolhado dentro dele.
É a emanação dos instintos mais doces. Daquelas que dá
toda a delicadeza para a mão trêmula do brutamontes que, com
um sorriso envergonhado, toca o cabelo perfumado da menina.
Dá sentido à poesia, põe brilho nos olhos e uma leve malícia no
andar. E, acima de tudo, liquida a vergonha de ser frágil.
Quando os olhos encontram a fonte mágica de aromas que
mora nas flores, os pés têm de andar até ela. É inevitável ser
transmutado em beija-flor, em abelha, e como qualquer inseto
é preciso mergulhar no miolo da beleza, se empanturrar com
tanto mistério, sem nenhuma razão para raciocinar.
Depois ir embora, porque um cheiro só te quer por alguns
segundos, tempo de te seduzir e cravar como ferro em brasa
mais uma lembrança. Depois te renega e te manda partir. Você
vai então, mais leve, sem saber direito o que pensar (o que é
isso mesmo?) e harmonizado com aquilo que a natureza fez
de melhor: um mundo perfumado por flores para você sofrer
menos e viver mais.

da memória


Roberto Araújo
[email protected]

O tubo de ensaio


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