Visão 1373 [27-06-2019]

(claudioch) #1
o instante em que abriu os olhos, Melchior
sonhava com um bando de garças levantando
voo a partir de uma salina. No sonho, a salina
era um imenso descampado, de um branco
sem mácula. Voltou a fechar os olhos. Pare-
cia-lhe ter acordado "dentro de um sonho
maior". Foram essas as palavras que utilizou,
muitos anos mais tarde, para me descrever o
sucedido. Abriu de novo os olhos, viu-se ou-
tra vez cercado pela infatigável brancura, e só
então se lembrou do que acontecera no dia anterior.
Fora caçar. Saíra de manhã muito cedo, na com-
panhia de Kim e de Brazza, os seus dois perdigueiros
albinos: "Regressei ao entardecer, à procura da carrinha,
mas não a encontrei. Descobri nesse

se escondiam muitas vezes dentro delas. Era uma re-
comendação desnecessária, que, no entanto, o caçador
agradeceu enternecido, pois lhe pareceu quase uma
declaração de amor.
Nessa noite, deitado na melhor cama do mundo, Mel-
chior dormiu mal. Adormecer seria perder o momento.
Ali, com o corpo suspenso nos floc2s de algodão, respi-
rando o perfume fresco do lençol, veio-lhe à memória o
rosto brilhante de Natália e ocorreu-lhe que seria dela o
frescor a citrinos.
Acordou várias vezes. Através de uma estreita janela
aberta sobre a porta do armazém assistiu à euforia das
estrelas. Viu-as, ou sonhou que as viu, dançando na
noite como abelhas bêbedas. No lusco- fusco incerto da
alvorada, deu com uma coruja per-
momento que estava perdido."
Alguém que se descobre perdi-
do, pensei, eis um belo oxímoro para
definir a condição humana. Per-
doem-me a divagação. Já a minha

Lá de cima avistou


seguindo uma cobra, e compreen-
deu então, com brusca clareza, que
estava prestes a nascer de novo. Foi
o que me disse, assim mesmo, com
estas palavras.
avó me acusava de sofrer de desva-
rios filosóficos: "Tens o juízo infla-
mado, rapariga. Vais acabar artista,
como o teu avô, que era tão inútil
quanto chuva no mar." Continuemos.
Melchior foi à procura da carrinha e
não a encontrou. Marchou durante
duas horas, furando a custo por entre
o capim-elefante, mais alto do que
um homem, cada passo na lama uma
agonia, lutando para não perder as
botas, e depois das botas os pés, até
que a noite engoliu todas as cores, e o
mato eclodiu numa profusão de pia-
dos, choros e uivos e estalidos.
"Só conseguia ver o fulgor dos
cães." -Disse-me. -"Graças a Deus,
o pelo deles brilhava à noite. Foi esse
brilho que me salvou."
Os cães conduziram- no a uma
pequena colina. Lá de cima avistou as
luzes de uma casa, e a estradinha de
terra batida que a ligava ao mundo.
Conseguiu alcançar a picada, e em


as luzes de uma
casa, e a estradinha
de terra batida que
a ligava ao mundo.
Conseguiu alcançar
a picaaa, e em quinze
minutos batia à porta.
O proprietário, um
homem mirrado,
um pouco estrábico,
estendeu- lhe uma mão
desconfiad a , dizendo
chamar-se Alípio, e
desculpa ndo- se por
não o poder alojar.
A habitação era
pequena e ele tinha
seis filhas

Portanto, Melchior despertou,
manhã cedo, sonhando com garças,
abriu os olhos e voltou a cerrá-
-los, achando que caíra num sonho
maior, e ao reabri- los, enquanto se
recordava de tudo o que sucedera
no dia anterior, viu Natália, vesti-
da de branco, tendo aos pés os dois
perdigueiros albinos.
"Todos nós nascemos pelo menos
duas vezes."-Assegurou- me, muito
sério. Para ele, o segundo nasci-
mento aconteceu na manhã em que
acordou na melhor cama do mundo
e viu a minha avó junto à porta do
armazém, sorrindo para ele.
Natália - uma mulher prática e
alegre, que atravessou a vida sem
nunca se comover com um pôr do
Sol- , troçava dele:
"Jogámos à sorte, entre as irmãs,
a quem calharia acordar o caçador.
Calhou- me a mim e lá fui, contra-
riada. Nunca gostei de caçadores.
quinze minutos batia à porta. O proprietário, um ho-
mem mirrado, um pouco estrábico, estendeu-lhe uma
mão desconfiada, dizendo chamar-se Alípio, e descul-
pando-se por não o poder alojar. A habitação era peque-
na e ele tinha seis filhas. O cavalheiro teria de passar a
noite no armazém do algodão. Melchior concordou. Não
precisava de muito, disse, apenas de uma esteira onde se
estender e de um balde com água para lavar o rosto.

Não sorri para ele, é mentira, nem sequer o cumpri-
mentei. Estendi-lhe uma caneca de esmalte, com café
quente, e fui-me embora."

"Nunca poderia imaginar", disse- me Melchior, "o que
encontraria ali: a melhor cama do mundo."
Três das filhas de Alípio trouxeram lençóis lavados,
que estenderam sobre uma enorme pilha de flocos de
algodão recém-colhidos. Uma das meninas, Natália,
prendeu um mosquiteiro a um gancho, numa das tra-
ves do teto, enquanto alertava Melchior para sacudir as
botas, de manhã, antes de as calçar, porque os lacraus


Casaram-se três meses depois, e foram viver para
Luanda, onde o meu avô abriu um estúdio de fotogra-
fia. Era suposto ganhar a vida revelando e ampliando
as fotografias dos clientes, fotografando casamentos ou
batizados, mas Melchior passava mais tempo ocupado
com a própria arte, de forma que a loja abriu falência e
teve de ser Natália a lutar pelo sustento da fami1ia, con-
fecionando e vendendo doces.
Melchior deixou-me as fotografias. São, como se
costuma dizer, o retrato de uma época. Infelizmente,
não há uma única imagem daquele armazém de algodão
onde o meu avô nasceu pela segunda vez. Onde, afinal,
começou a minha história. liJ [email protected]

27 JUNHO 2019 VISÃO 9
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