ARTES
Vista de cima, a cena é toda uma co-
reografia: o enxame de vigilantes apru-
mados segue obedientemente Marie-
- France Bertrand, diretora do Musée
Würth France Erstein, que os guia pela
sala branca, horas antes da inauguração
de mais uma exposição. Na mezzanine,
posto de observação onde estacionou,
por momentos, o grupo de convidados
e jornalistas portugueses que rodeia
José de Guimarães, o humor não tarda
a manifestar-~e: "Ah, agora percebe- se
para onde foram todos os guardas do
Museu Nacional de Arte Antiga ... " Es-
tamos longe das Janelas Verdes: entre
Lisboa e Erstein, na Alsácia, perto de
Estrasburgo, há dois mil quilómetros de
distância. Neste subúrbio com estreitas
ligações históricas à Alemanha, lar de
dez mil almas e lugar onde o sossego
se põe muito antes do Sol, foi inaugu-
rada, a 16 de junho, José de Guimarães,
Collection Würth et Prêts, uma grande
mostra dedicada ao artista português,
constituída por cerca de 100 obras.
Pertencem, na sua esmagadora maio-
ria, à coleção de arte contemporânea de
Reinhold Würth, o maior colecionador
de obras de José de Guimarães - 288,
atualmente. O industrial alemão en-
contra "humor" no sentido positivo das
obras do artista português e tem a inusi-
tada prática de construir museus ao lado
das suas muitas fábricas (ver caixa). Foi,
também, assim que a tranquila Erstein
ganhou, encostada a um nada glamo-
roso parque fabril, a sofisticada caixa
arquitetónica que, nos últimos 12 anos,
abrigou 16 exposições, incluindo mos-
tras dedicadas a artistas como Anselm
Kiefer, Anthony Caro, Fernando Botero
e Hélene de Beauvoir (irmã de Simone).
"É PRECISO IR ÀS ORIGENS"
José de Guimarães já expôs o seu tra-
balho em vários museus Würth. Mas,
desta vez, a homenagem é ambiciosa,
marcos inéditos são atingidos. José de
Guimarães, Collection Würth et Prêts
revela, por exemplo, pela primeira vez
na íntegra, Alfabeto Africano (1971-
-1974), obra fundamental composta
por 132 peças, realizada quando o ar-
tista viveu em Angola. É uma "escrita
ideográfica", influenciada pelo pensa-
mento das culturas tribais africanas,
recorda Guimarães a ouvintes de várias
gerações: pés, mãos, setas, serpentes,
números, fragmentos, perfis cubistas
ou criaturas cuspidoras de excres-
cências invadem toda a parede. "É um
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De A a Z Alfabeto Africano
(1971-1974), obra exposta pela
primeira vez em versão integral
numa parede que "surpreendeu"
o próprio autor, José de
Guimarães
f)
Teatro de figuras Este "altar
africano" é uma pequena amostra
da coleção privada do artista
plástico, que contabiliza mais
de 5 mil peças
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Renascimento A Madonna de
Darmstadt, obra maior do século
XVI, ganhou versões gráficas
contemporâneas com a marca
de José de Guimarães
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Viva México! Amantes (1995), da
série México, nuclear na produção
de José de Guimarães e um
dos pontos fortes da exposição
dedicada ao português em Erstein
~
grande decifrador para ler as obras que
estão aqui", diz José. "Tudo isto nasceu
do encontro entre cultura ocidental e
cultura oriental. E foi at ravés dos ar-
tefactos africanos, das máscaras, das
tatuagens, que encontrei uma solução
que me permitiu criar estes pictogra-
mas", reforça.
As obras vizinhas, realizadas entre
19 6 6 e 20 14, d esafiam os distraídos
que pensam que o estilo da escultura
gigante Lisboa (1999), vizinha dos edi-
fícios concebidos por Renzo Piano em
Braço de Prata, é tudo o que há para
saber sobre José de Guimarães. Ficarão
surpreendidos com as suas primeiras
pinturas: inspiradas em espiões, dete-
tives, no clima de guerra e até na marca
de queijo La Vache Qui Rit, revelam-se
muito devedoras da estética pop. Perto,
repousam as Giocondas negras - que,
declara o artista, deram início à frag-
mentação das suas figuras pictóricas.
No segundo piso, a bússola aponta à
ampla série México: telas expressivas,
colagens de "papeles picados" e muitos
esqueletos. Também lá está O Ritual da
Serpente (2014), dez guaches coloridos
inspirados no sempre misterioso his-
toriador de arte alemão Aby Warburg.
E há Favela (2007): um amontoado