Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

Io·LETRAS


jomaldeletras.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL


Ana Cristina Silva


Contra o esquecimento


. •


Memória da tortura, da repressão, da violência, e do Portugal fascista, num romance escrito


a partir de factos e testemunhos verídicos, As Longas Noites de Caxias pretende ser uma


"homenagem a todos os antifascistas" a quem a "sociedade portuguesa nunca agradeceu o


suficiente", como adianta ao JL a escritora, tamb~m psicóloga, professora universitária


e investigadora. Uma entrevista a que se junta a crítica de Miguel Real


MARIA LEONOR NUNES

A ' longa noite fascista' , protagoni-
zada pela terrivele temida agente
Leninha, Madalena Oliveira, a mulher
que chegou mais longe na hierarquia
da Pide, chefe de brigada, e em con-
traponto uma jovem estudante de 21
anos, torturada e espancada durante
18 dias, um símbolo d~ resistência:
As Longas Noites de Caxias, o recente
romance de Ana Cristina Silva, com a
chancela da Planeta, é uma daquelas
ficções em que qualquer semelhança
com a realidade é pura verdade. Um
'memorial' de homenagem, escrito
contra o branqueamento e uma certa
ingratidão da sociédade portuguesa
em relação aos milhares de antifas-
cistas, muitos dos quais brutalmente
torturados, na luta pela liberdade.
Ana Cristina Silva, 54 anos,
estreou - se em 2002, com Mariana,
Todas as Cartas. Publicou de seguida
A Mulher 'Ihlnsparente, As Fogueiras
da Inquisição, A Segunda Morte de
Anna Karénina, Cartas Vennelhas, A
Noite não é Eterna (Prémio Fernando
Namora 2017), entre outros. Uma
obra com algumas incursões na
História e uma identidade marcada
pela abordagem psicológica. Nada
mais natural, já que a escritora é
psicóloga e professora no Instituto
Superior de Psicologia Aplicada, ISPA,
M décadas, onde tem desenvolvido
trabalho de investigação na área da
aprendizagem da leitura e da escrita,
instrumentos fundamentais, afirma
ao JL, da "liberdade humana".

Jornal de Letras: As Longas Noites
de Caxias é dedicado a todos os.
antifascistas. Uma homenagem?
Ana Cristina Silva: Sim. Portugal ain-
da não agradeceu o suficiente a essas
pessoas que tanto contribuíram para
a resistência ao regime fascista -e por
isso para a democracia. É raro falar-se

Ana Cristina Silva "Foi multo delicado escrever As Longas Noites de Caxias"

''


Portugal ainda
não agradeceu o
suficiente aos que tanto
contribuíram para a
resistência ao fascismo
e para a democracia

da repressão, da tortura e de quem a
sofreu.

Assistimos antes a um certo
branqueamento?
Exatamente. Lembro-me de ter lido,
há algum tempo, uma entrevista a um
pide num jornal, em que ele dizia que
não tinha acontecido nada de especial
nas prisões e não houve contraditório.
É preciso acabar com esse branquea-
mento. Evidentemente, os historia-
dores têm estudado o' Estado Novo, a
Pide, e publicado livros. Um deles, O
Caso da Piàe/DGS, de Irene Pimentel,
que estudei antes de escrever o meu
romance. Na literatura, temos uns
contos de João de Melo, de Mário de
Carvalho e pouco mais. Por isso, senti
que o meu livro era necessário.

E o que desencadeou a necessidade de
o escrever?

Era pequena quando aconteceu o 25
de Abril, mas tenho uma memó-
ria muito antiga de estar na praia
da Foz do Arelho e ouvir alguém,
dentro de uma barraca ao lado, falar
da água que escorria das paredes da
prisão de Caxias. Por alguma razão
nunca o esqueci. Mas soube que
queria escrever este livro, quando,
há anos tive conhecimento, por
uma reportagem, da pide Madalena
Oliveira. Era tão terrível que em
2016, senti que tinha mesmo que
escrever sobre ela.

O que a impressionou
~ente?
O seu sadismo. O sadismo que
encontramos nos torturadores em
geral, nos guardas dos campos de
concentração nazis, nos que batem
nas mulheres, com o prazer de
esmagar o outro. Madalena Oliveira
é um monstro português, a encarna-
çãodomal.

Nunca mostrou arrependimento e
pouco antes de morrer disse até que
os tempos da Pide foram os mais
felizes da sua vida ...
É verdade. Essa última frase do meu
livro não é ficção. Chamo-lhe Maria
Helena, agente Leninha, como, de
resto, era conhecida, embora os
pides apareçam com os seus nomes
verdadeiros, Não usei Madalena
Oliveira, porque há caracteristicas da

sua personalidade que teriam de ser
ficcionadas.
Foi pertwbador reconstituir a vida
dessa personagem, descrever os seus
comportamentos, a sua violência, as ·
torturas?
O mais perturbador é o facto de,
apesar do tratamento literário, tudo
isso ser real, ter acontecido e daquela
forma: é o que torna o livro arre-
piante. Porque a chamada prinlavera
marcelista, do ponto de vista da
repressão, foi um inverno. Por isso, é
compreensível que a presa política, a
quem chamei Laura Branco, porque
não queria ser reconhecida, não
queira ler o meu livro. O sofrimento
está sempre muito presente, não se
pode apagar.

SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA
Quando lhe surgiu Laura Branco na
sua narrativa?
Não quis dar protagonismo só à pide.
Fazia sentido para mim haver uma
presa política, embora possa parecer·
um pouco dicotómico, entre o bem
e o mal. U vários testemunhos de
mulheres que foram torturadas e
escolhi a minha Laura precisamente
pela forma como ela resistiu. Queria
perceber como tinha arranjado força.

E percebeu?
Pelo que contou, embora não o tenha
dito explicitamente, acho que ela
resistiu porque acreditava que tinha
algum controlo sobre os pides. Era
uma fantasia. E, por outro lado, o
amor, o facto de ter sido uma criança
muito amada e apoiada pela mãe,
pelos amigos. Daí ela contar que
quando a levavam para a cela, depois
dos interrogatórios, da tortura, tinha
visto no corredor uma multidão que
a tinha acompanhado.

Indicia que seria uma militante do
MRPP, a namoradli de José Ribeiro
dos Santos, assassinado pela Pide.
Por acaso. Aliás, nunca,é explicitado,
apenas se depreende da relação com
o Ribeiro dos Santos, que na verdade
também é ficção. Digamos que podia
ter sido uma namorada secreta.

Realidade e ficção niisturam-se
constantemente no entretecer da
narrativa?
Mesmo na minha cabeça. Foi muito
delicado escrever este livro.

Porquê?
Em primeiro lugar, porque a Laura
Branco corresponde a uma pessoa
real com quem estive pelo menos
duas vezes, durante muitas horas e
que me deixou usar a sua vida para
compor uma personagem. Isso torna
o trabalho literário particularmente
delicado.

Essas conversas surpreenderam-na?
O que rp.ais me chocou foi o seu
sofrimento durante 18 dias, todo o
processo da tortura. Estar com ela
e ouvi -la relatar tudo o que passou
foi terrível. A certa altura, quase me
apeteceu abraçá -la, mas não o fiz.
Por outro lado, foi um choque per-
ceber que uma pessoa como a pide
Leninha tinha existido e cometido
todos aqueles atos. E como tinha fica-
do como um fantasma na cabeça dos
presos políticos. Conceição Matos,
que foi horrivelmente torturada por
ela, como li numa reportagem, quan-
do ouviu o nome Madalena Oliveira,
muitos anos passados, não deixou de
ter uma reação de raiva, apesar de ser
uma pessoa muito doce e serena.

Madalena Oliveira foi julgada e o
tribunal militar condenou-a a quatro
anos de prisão.
E isso é igualmente um facto, não
ficção. A justiça foi branda para os
torturadores.

O PORTUGAL FASCISTA
Também dedica As Longas Noites de
Caxias aos jovens. Porquê?
Porque acho que a maioria dos que
têm menos de 40 anos não têm a
noção do que acontecia na Pide,
nem das condições de vida no tempo
do fascismo: do que passavam os
camponeses, do trabalho à jorna,
da fome, das crianças que iam para
a escola descalças, da mortalidade
infantil.

Uma realidade social, politica,
cultural, que enquadra toda a sua
narrativa?
O Portugal fascista é quase uma
personagem. Não podemos separar
as pessoas do seu ambiente. Já tinha
feito esse forte enquadramento em
livros anteriores, por exemplo, em A
Noite não é Eterna. Na verdade, a vida
da minha personagem Laura Branco
é muito determinada pelo contexto
em que viveu. Ela teve uma sorte
excecional, porque na altura era
praticamente impossível uma jovem
daquela classe social conseguir ir
para a faculdade. E isso foi verdade.

T-ambém é um Portugal fascista
pelo lado feminino, com os seus
estereótipos.
Sim, as costureiras, as sopeiras. Até
a Leninha teve, digamos, problemas
de género, em relação à carreira.
Tive, aliás, receio que o facto de
ter contad9 a história de violência
na sua infância pudesse parecer
uma desculpa. Claro que num ser
profundamente violento há sempre
uma predisposição genética e uma
história pouco feliz, nomeadamente
ao nível da infância. Mas não há uma
relação causa e efeito. As pessoas têm
sempre escolha.
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