Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

JL / 19dejunhoa2dejulhode2019 • jomaldeletras.pt


LETRAS·ll


E escrever sobre a violência exige
muito da escritora?
Não é fácil. Há muitos anos, quando
escrevi A Mulher Thlnsparente, um
livro sobre a violência doméstica,
quando pouco se falava nisso, Maria
Teresa Horta disse- me que eu era
urna escritora da violência. E real-
mente escrevo muitas vezes sobre a
violência.

Porquê?
Porque me assusta. Há urna parte
de nós, enquanto espécie, que é
profundamente violenta. E gosto de
pôr os leitores face a essa violência,
para que tenham consciência dela e
a rejeitem.

UM OLHAR PSICOLÓGICO
A psicóloga também ajuda a escritora
a construir as suas personagens e
narrativas?
Faz parte da minha escrita. Já escrevi
muitos livros e realmente o que os
caracteriza é sempre urna dimensão
mais psicológica, quase urna imagem
de marca. É essa a minha forma de
olhar a realidade. Não será por acaso
que escolhi a Psicologia.

E o que lhe interessa no trabalho
literário sobre o histórico?
Metade dos meus livros são realrnen-
te romances históricos. Em A Arte do
Romance, Milan Kundera diz que há
·romances históricos que são a ilustra-
ção das caracteristicas de urna época
e outros que se procuram centrar no
que é universal ao Homem, ~depen­
denternente da sua época histórica. É
isso que mais me interessa.

Faz sempre uma pesquisa aturada
antes de começar a escrever um
romance?
Quando escrevi sobre a guerra colo-
nial, estudei o stress pós- traumáti-
co. Neste livro, li urna tese sobre as
vítimas de tortura. Tem a ver com a
minha vida real, ligada à Psicologia.
A escrita é muito importante para
mim, dedico-lhe todos os bocadi-
nhos que posso, Mas a minha vida
não é a literatura. E isso também me
dá urna certa liberdade.

Em que sentido?
Não tenho que seguir determinadas
fórmulas vendáveis, apesar de todos
nos termos de preocupar e pensar
formas de chegar aos leitores, porque
diminuíram muito. Qualquer escritor
quer ser lido. Não é por um mero
exercício narcisico que faço divulga-
ção dos meus livros no facebook, tal
corno outros escritores. Andamos a
pescar leitores quase à linha.

As Longas Noites de Caxias é um livro
em que sentiu que tinha afinnado
mais a sua escrita?
Do ponto de vista pessoal, foi mesmo
muito importante, porque tinha
sofrido um atropelamento, em se -
tembro de 2016, e tive urna pequena
lesão no hemisfério esquerdo, o que,
por exemplo, teve corno conse-
quência urna troca de palavras no
mesmo campo semântico e algumas
dificuldades. Talvez tenha querido
provar que era capaz de voltar a
escrever. .JL

OS DIAS DA PROSA


Miguel Real


Ornai


rn As Longas Noites de Caxias, Ana Cristina
Silva problematiza o mal corno terna central.
Não o mal metafisico, transcendente ou
religioso, não o mal económico (a pobreza,
a fome), não o mal biológico (a doença, a
morte), não o mal psicológico (a angústia,
a depressão), mas o mal físico da tortura -
aquele que se exprime através do suplício ou
do tormento de outro cometido por alguém
dotado momentaneamente de poderes institucionais superiores.
Local do mal: o Forte de Caxias,
perto de Lisboa, onde o Estado
Novo encarcerava os oposicionistas
políticos. Autores do mal: os
guardas prisionais, os inspetores e
chefes de brigada da PIDE, Polícia
Internacional e de Defesa do Estado,
denominada Direção-Geral de
Segurança no tempo de Marcello
Caetano, no estertor do regime.
Objetos do mal: os presos políticos
encarcerados em Caxias.
Desconhecemos se autora quis
apenas narrar urna história real
com nomes falsos, resgatando um
tempo histórico amaldiçoado da
história de Portugal, corno o fizera
em ~s Fogueiras da Inquisição
(2oo8), ou se, através do romance,
pr.etendeu expor ficionalrnente
a tese de Hannah Arendt sobre
a banalidade do mal patente no
livro Eichrnann em Jerusalém
(1963), explorando a personalidade
perversa de torcionária Maria
Helena ou Leninha, agente da
PIDE, que não só se desculpava
com o cumprimento do dever do
seu cargo corno o envolvia na teoria
justificativa patrioteira cristã e
anticornunista de Oliveira Salazar. Leninha é um ótirno exemplo
ficcional da banalidade do mal.
Em As Longas Noites de Caxias o objeto do mal é concentrado
em Laura Branco, estudante universitária nos princípios da
década de 70, amiga/namorada de José António Ribeiro dos
Santos, estudante rnaoista assassinado pela PIDE em 1973. O
núcleo do romance descreve os 17 dias de sevícias e tortura do
sono infligidas por Leninha a Laura Branco (tão horrorosas que
.nos recusamos a fazer citações), sem que esta delate à
polícia o nome de outros oposicionistas. Goram-se os
atos de Leninha, que, martirizando Laura, sobretudo
durante o período das "longas noites", sentindo
prazer com o medo que lhe desperta, não consegue
derrubar a "dignidade" da presa, forçando- a a falar.
A prática continuada do mal revela-se incapaz de
vencer o bem, isto é, a perversidade não consegue
derrotar a honra e a dignidade de pessoa humana de
Laura.

na testa por Salazar, quando este fora a Setúbal, dia para si
epifânico, que desde sempre desejava ser polícia; Laura, símbolo
do bem, ajuda colegas; Leninha, símbolo do mal, castiga-as,
é ruim para com todos os que pode ser, inclusive animais.
Em Laura, inatarnente, habita a decência, os bons hábitos e a
vontade de ajudar; em Leninha, os maus instintos, a vontade
fazer sofrer e o prazer de assistir ao sofrimento alheio.
Até à p. 113, é descrita a vida de Laura até à ida para
universidade, a sua prisão e a relação entre Leninha e Laura,
aquela, poderosa com o seu uniforme de polícia, esta,
desprovida de trajes que os simples
de urna prisioneira; aquela, pujante
com os atributos que lhe são dados
pelo seu cargo institucional; esta,
continuamente alvo de atrocidades
na cela de tortura, por parte de
inspetores e de Leninha. A partir
daquela página, é descrita a
educação tortuosa de Leninha e de
corno o mal se lhe alojara na mente
desde muito cedo. Leninha, já
polícia, conhece Manuel em Braga,
num jogo de futebol, vivem juntos,
casam, têm um filho, António,
que sofre de atrasos psicológicos,
e separam- se, Manuel enganava
Maria Helena. O mal atrai o mal:
"abyssus abyssurn invocat", e a vida
de Leninha entorta-se. De tanto
praticar o mal, este invade- lhe a
existência e tudo começa a correr
negativamente. Mal dos males: o 25
de Abril de 1974, a libertação dos
presos políticos e, em troca, a sua
prisão, Leninha vai habitar urna cela
de Caxias.
Com o 25 de Abril, o leitor
aguarda urna transformação na
mentalidade de Leninha, urna
autocrítica e autocondenação dos
seus atos asquerosos. Em 1977, Lenhinha é julgada em tribunal
militar. Laura, que vai testemunhar, sente arrepios de vingança.
No tribunal, Leninha permanece igual ao que sempre fora: urna
mulher má que justifica os seus atos perversos por via de urna
retórica salazarista e anti-cornunista, e di-lo sem pudor no
tribunal, o que fizera fora por dever patriótico num tempo e~
que era necessário proteger o Império.
No final de As Longas Noites de Caxias, narrando tempos já de
2003, quando o corpo de Leninha está a ser corroído
por um cancro que a levará às portas da morte, a
autora aponta para urna segunda tese sobre o mal,
não a da justificação deste por via de urna cadeira
hierárquica desculpadora, mas a do "mal radical"
em Kant, isto é, de urna predisposição natural (inata)
para o mal no ser humano, que Konrad Lorenz no
século XX confirmará em A Agresssão. Uma História
Natural do Mal (1963). Leninha seria exemplo perfeito
desta tese-nela, a vida e o prazer condensar-se-iam
no ato de violência física e de humilhação psíquica
sobre outrérn. Por isso, perto da morte, Leninha

Laura nascera em Mértola, filha de um casal
"remediado"; Leninha em Setúbal, filha de um casal
desarmónico - o pai, bêbado, bate diariamente ··································· pode confessar: "Não, nunca me arrependi de nada.
na mãe com a cumplicidade da filha, que em tudo > Ana Cristina Silva Os tempos na PIDE foram os mais felizes da minha
imita o pai; a mãe torna-se um farrapo vivo. Laura
é boa aluna, ganha bolsas que a levam para o Liceu
Nacional de Beja e, depois, para a Faculdade de
Direito de Lisboa; Leninha, criança, foi beijada

AS LONGAS
NOITES DE
CAXIAS
Planeta, 208 pp. 16 , 95 euros.

vida" (última página). Mas nunca ·a autora aponta para
urna ontologia do mal, corno Antero de Quental, que
confessava num famoso soneto "Só males são reais, só
dor existe/ prazeres só os gera a fantasia". .JL
Free download pdf