Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

12 · LETRAS


jomaldeletras.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL


Literatura de Exílio


Inúmeros escritores, incluindo muitos famosos, escolheram ou tiveram de sofrer o exílio, mormente


por serem vítimas de perseguição -e o exílio foi tema, ou fundo, da obra de não poucos deles, como


salienta neste texto quem também foi, durante longos anos, exilado político, por como militar ter lutado


contra a ditadura salazarista. Depois editor, autor de diversos livros (um deles sobre exílios, e outro sobre
populismos), após o 25 de Abril presidente da RTP, da Lusa, da administração da empresa do Diário de

Notícias, recorda que "nunca houve tantos exilados, deslocados, refugiados e emigrantes no mundo como


hoje: mais de 6oo milhões" ...


MANUEL PEDROSO MARQUES

e! o tema da literatura de exílio
pode resumir-se ao impacto da
residência do escritor no estran-
geiro sobre o fazer literário. A
primeira distinção que me ocorre
liga-se a dois géneros literários
que se podem identificar por
situações sociais e na perscruta-
ção psicológica das personagens.
Distinção que não resiste à mistura
da perquirição social e psicoló-
gica no mesmo livro, comum em
variadíssimas ficções. Todavia,
Ernest Herrtingway não poderia ter
escrito muitos dos seus livros se
não tivesse vivido nos paises onde
a ação ocorreu ou não tivesse pre-
senciado as experiências humanas
que inspiraram a sua literatura.
Os seus livros têm um local (Por
quem os sinos dobram, O Adeus às
armas, Paris é uma festa, As neves
de Kilimanjaro, O velho e o mar,
etc.). Hemingway era iricapaz de
passar o tempo de algumas páginas
de Philip Roth a descrever o que a
mãe do jovem personagem imagina
o que este fará quando fecha-
do na casa de banho (Portnoy's
Complaint). Personagens mergu-
lhadas em tormentos psíquicos
freudianos, descritas por uns,
situações de vida que marcam
homens e de ideias que marcam vi-
das, narradas por outros, exempli-
ficam diferenças entre escritores.
Os escritores em exílio forçado
J1or razões políticas distinguem-se
dos que ado taram o exílio volun-
tariamente. Cada exilado tem o
seu exílio como coisa da própria
vida. Mas podem anotar-se pontos
comuns. Também se pode sentir o
exílio no pais natal. A ideia de que o
exílio tem de passar-se no exterior
vem da Antiguidade, porque "os
judeus se consideraram estrangei-
rosno Egito" ou porque um con-
denado à morte poderia escolher
entre a morte e o exílio numa ilha e
mais recentemente com políticos:
Napoleão em Santa Helena e Mário
Soares em São Tomé ...
Pode dizer-se que "não se co-
nhece nenhum modo de funciona-
mento da humanidade que tenha
eliminado as relações de domi-
nação", como salienta o illósofo
da conflitualidade, Paul Ricoeur.


Assim, a revolta dos dominados
não precisa de fazer revolucioná-
rios para dar matéria de estudo ao
sociólogo: os conflitos. Também
acontece que o ambiente obscuran-
tista pode tornar-se insuportável
para jovens ansiosos por expressar
a sua originalidade. Este sentimen-
to foi detetado em muitos dos que
integraram a "geração perdida".
Os exilados como os emigrantes
sentem a sua estrangeneidade - não
é "o ser" é "o sentir-'se estrangei-
ro" --no pais de exílio ou de do-
micilio: não é de lá; não tem trajeto
de vida nem história. Esta sensação
acovarda porque nem sempre se
sabe se está perante manifestações
de repúdio ou de falsa aceitação.
E a propriedade do sentimento de
nacionalidade, quando discrimi-
na e humilha é uma apropriação
fascista. ·
Quando a. audição da sua própria
língua mat~rna surpreende um
exilado; quando não imagina como,
nem quando, vai acabar o seu
exílio; quando o trabalho profis-
sional se efetiva num nível inferior
ao que usufruia; quando o tempo
de afastamento o leva a indagar-
-se de como seria recebido no seu
próprio pais, a crise de identida-
de instala-se, sorrateiramente, a
corroer aspetos de personalidade
que podem traçar o que cada. um
faz do e no seu exílio. Momento em
que afloram ambiguidades: "O meu
pais sem liberdade ou a liberdade
sem o meu pais".
Entre as características que
Ralph Schor elege, no seu livro
Écrire en exil, para os escritores
exilados políticos figura o me-
morialismo. Agarrados ao seu
passado, oscilam entre expectativas
sombrias e luminosas de futuro que
imaginam para o seu pais e para
eles próprios. A sua integração no
pais de acolhimento é mais difícil
do que acontece com um emigrante
por razões económi!las. O primeiro
tem um passado, uma expectativa
de futuro coletivo para o pais de
origem, que ·não depende dele. O
segundo tem um presente e ambi-
ciona um futuro pessoal que só a ele
cabe construir.
Entre a crença e o ceticis-
mo sobre a evolução da situação
política na sua Pátria, o escritor
exilado atrai-se mais pelo ensaismo

Duas escritoras no exílio Hannah Arendt (à esq,!!) e Nina Beberova

''


A crise de identidade
instala- se
'
sorrateiramente, a
corroer aspetos de
personalidade que
podem traçar o que cada
um faz do e no seu exílio

que pela ficção. Também dedicam
particular atenção às condições da
emigração económica originária
do seu pais, como foi o caso de
Nina Berberova, sobre os operá-
rios russos da Renault (Crónicas de
Billancourt) e escritores e jornalistas
portugueses exilados, como Jorge
Reis e Carlos Veiga Pereira, sobre a
vida dos portugueses nos "bidon-
villes", reportada nas emissões da
ORTF --Office de Radiodiffusion
Télévision Française.
Os exilados voluntários, mais
jovens, preenchem -se com proje-
tos, convívios, experiências de vida
e de descoberta de ideias. Nas pri-
meiras décadas do século passado,
por esta razão e pela ideia de que a
viagem estimulava a criação, vários
escritores norte americanos vieram

para Paris, considerada a "capital
da arte". Ficaram para a história a
fazer parte da chamada "geração
perdida", que não o foi para a lite-
ratura. Contam-se entre eles, além
de Hemingway, Gertrude Stein,
Ezra Pound, Henry Miller, Anais
Nin, John Dos Passos, a coleciona-
dora de arte Peggy Guggenheim,
Zelda e Scott Fitzgerald, T.S. Eliot e
Louis Bromfield que animava·ter-
túlias e as famosas festas onde essa
geração se encontrava. Outros de-
moraram em Paris, como itinerário
de fuga às perseguições, caso da
Hannah Arendt, ou pela atração do ·
ambiente, como Samuel Beckett,
Georges Gurvitch e outros.
Paris manteve-se a "pátria dos
refugiados". Desde Léon Blum:
"A França não tem fronteiras para
nenhum exilado, para nenhum
proscrito, nem para os de Estaline
nem para os de Mussolini". Em
consequência da Revolução de 1917,
o maior número de exilados em
Paris eram russos, afetos ao abso-
lutismo czarista e, posteriormente,
os desiludidos do estalinismo. Os
primeiros grupos de exilados foram
arménios (escapados do geno-
cídio), judeus alemães, polacos,
húngaros, checos e romenos. Dos
300 escritores, mencionados por
R Schor no op. cit., cerca de 70%
eram judeus e a quase todos de

fanlilias ricas, maioritariamente de
origem alemã, o que deixa supor
que as fugas eram caras e o dinhei-
ro as facilitava.
A integração dos f;Scritores
na sociedade de acolhimento
confronta-se, desde logo, com o
facto de uma integração cultural de
qualquer estrangeiro nunca se efe-
tuar completamente. Um modo de
avaliar o grau de integração pode
ser o da participação nas grandes
questões nacionais do pais asilante,
como o maquis em França que con-
tou com Beckett, o polonês Victor
Fay, Romain Gary, além de outros.
A incorporação nas Brigadas
Internacionais em Espanha terá um
significado estritamente político.
A americanização de Nabokov, ·
que acabou a escrever em inglês,
não é comum, embora se tenha
dedicado muito tempo ao ensino
de russo em vários paises, vindo
a assumir a deriva anarquista de
"cidadão do mundo" e a considerar
que a residência no exterior não
tem qualquer influência nos seus
livros. Ds anarquistas considera-
vam os exilados mais próximos do
seu ideal de cidadãos do mundo,
dedicando-lhes por isso grande
solidariedade.
Outra situação, que mexe com
o espírito do refugiado, acontece
quando ele passa de uma certa
notoriedade no seu país para o ab-
soluto anonimato no pais de exílio.
Será uma circunstância pessoal
difícil de gerir como, aliás, será a
contrária, a repentina aquisição de
notoriedade que, não raramente,
conduz à suposição de impunidade.
Para outros, "o anonimato
levou- os a viver mais por dentro,
o que reforçou o seu eu", escreveu
Manuel Villaverde Cabral. Para
Nina Gourfinkel, escritora russa
desanimada com o estalinismo, "o
exílio é uma má escola de vida".
Bertolt Brecht certifica situações:
"Nós fugimos, fomos expulsos, nós
somos proscritos. E o pais que nos
recebe não será um lar; é o exílio".
Os 300 escritores que Ralph
Schor recenseia no seu livro con-
ferem os dramas da sua existência:
Suicidaram-se 11 alemães e 23
russos, seja 14% e 29% dos exilados
desses países, em França. Dá para
imaginar a depressão psíquica
da comunidade de escritores e a
admitir que há uma "Literatura
de Exílio". Pensou-se que, depois
da 2ª. Guerra Mundial, os exílios
se reduziriam. Engano. Nunca
houve tantos exilados, deslocados,
refugiados e emigrantes no mundo
como hoje: mais de 6oo milhões.
Outra manifestação de exílio
pode ver-se na reação a tragédias,
ao holocausto, como Stefan Zweig:
" .... em boa hora e conduta ereta,
achei melhor concluir uma vida ....
em que a liberdade pessoal foi o
mais precioso bem sobre a Terra ....
Saúdo todos os meus amigos. Que
lhes seja dado ver a aurora desta
longa noite".
Acrescente-se o feellonguing de
Eduardo Lourenço pela sua gente:
"Não há exílios felizes, m:is pode
haver exílios de sucesso". • n
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