Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

14 • LETRAS


jomaldeletras.pt • 19 de junho a2 de julho de 2019 / JL


DESTINO BRASIL


Miguel Sanches Neto


Ignácio de Loyola Brandão


O Brasil que nos espera


ti Há uma tendência mundial de
narrativas distópicas, fermentadas
nos temores causados pelas rápi-
das ~erações climáticas, que têm
amedrontado·os contemporâneos,
algo que nos devolve à Guerra
Fria, quando por pouco não ocor-
reu uma hecatombe nuclear em
função da disputa entre os Estados
Unidos e a União Soviética. Talvez
o grande livro recente nesta
linhagem seja A Estrada ( 2006),
de Cormac McCarthy, em que
um pai e um filho enfrentam os
canibais para chegar a uma área
seguia e assim recomeçar a vida.
No cinema, o fim mundo em um
futuro próximo também é algo
muito presente, como na série
The Walking Dead e no filme Bird
Box, o que criou um imaginário de


receção para este tipo de história.
Ignácio de Loyola Brandão
sempre esteve identificado com
esta linhagem. Nos anos 1970,
quando o pânico nuclear unia a
intelectualidade e o Brasil passava
pela ditadura militar, Loyola
ganhou projeção internacional
como seu Zero, publicado primeiro
na Itália (1974), pela Feltrinelli,
em tradução de Antonio Tabucchi,
obra que seria censurada no
Brasil. Em 1981, nos estertores
da ditadura, sai outro romance
distópico, Não verás pais nenhum.
Unindo estas duas obras, a
perceção de que esta realidade
extrema só pode ser representada
pela fragmentaÇão narrativa e pela
coleção de frases retiradas dos
meios de comunicação.

CRÓNICA DE POESIA


Fernando Guimarães


Não é por acaso que o novo
romance de Loyola completa o que
poderíamos chamar de trilogia
apocalftica em um momento em
que o país vive uma grande crise
política, social e económica. Dessa
forma, seria correto pensar que
Desta terra nada vai sobror, a não
ser o vento que sopro sobre ela, dá
respostas tanto para o momento
de descrença mundial quanto para
a crise brasileira, aguçada com o
impeachment da Presidente Dilma
Rousseff. É, assim, um romance
visceralmente nacional, mas com
uma conexão internacional pela
onda das distopias.
Antes montado do que narrado,
este livro traz capítulos que se
iniciam com uma epígrafe, retirada
de vários lugares, desde músicas

Qual é o tempo da poesia?


P


ode-se dizer que
num poema existem
apenas palavras? As
palavras remetem-
nos para a linguagem
e esta para um ato
de comunicação, isto é, para lima
presença, para um encontro. A arte
é, pois, uma relação entre pessoas,
o que a relaciona com a vida. Mas
essa presença pessoal e viva é, no
caso da poesia, mais do que uma
relação entre aquele que escreve e
aquele que lê. Ambos representam
um encontro de vozes que
respondem a outras vozes que são
as de uma linguagem que já existia
antes, porque do passado ela nos
trouxe o seu ritmo.
A poesia confronta - se com o
tempo. De duas dimensões, as
que correspondem ao autor e ao
leitor, passamos agora para o que
seria três dimensões: o presente,
o passado e o futuro. Elas tendem
a convergir entre si para consti-
tuirem uma unidade. Um poema,

se verdadeiramente o é, é único e
total. Yves Bonnefoy -um poeta
francês dos nossos dias que ao
escrever poesia também a pensa -
considera que é a diversidade que
há na linguagem que conduz à uni-
dade: "L'un au coeur du multiple".
Talvez seja nesta multiplicida-
de· que se dá o tal encontro com
o tempo. Mas há também quem
diga que esse encontro se faz com
o ser. É o caso de um filósofo como
Heidegger. De uma maneira bem
poética ele diz- nos que o poeta é o
"pastor do ser" ...
Regressemos à,questão do
tempo. No tempo, há algo que se
encontra religado a nós mesmos,
à nossa existência, isto é, àquelas
raízes da vida a que já nos referi-
mos. O tempo pertence- nos, e isto
faz com que o que nele é tríplice se
concentre no ato de pensar, mas
de um pensamento vivo, que se
realize existencialmente. Pensar
é também um modo de viver, de
amar, de saber.

Passamos, assim, da dignidade
suprema do ser para a fragilidade
tão nossa da vida, porque é nela
que se corporiza -afinal, ganha
corpo -a linguagem qUando se
liberta da conceptualização, dado
que o ser é ainda um conceito,
tem um sentido predicativo. Pelo
contrário na poesia ou, mais alar-
gadamente, na arte o pensamento
conjuga- se com a imaginação. A
imaginação, que os grandes poetas
do Romantismo, desde Keats a
Hõlderlin consagraram, conduz-


  • nos ao sentido, isto e, a um senti-
    do que se vai tornando diferente, o
    qual se afasta daquele uso pura-
    mente lógico e abstrato. Isto parece
    ir ao encontro do que Jean- Jacques
    Rousseau, que se pode considerar
    um pré- romântico, disse no seu
    Essai sur l 'origine des Zangues ao
    reconhecer que desde o seu inicio
    a expressão verbal "ne vien pas des
    besoins, mais des passions".
    Talvez a aproximação que
    aqui se faz ao pensamento de


'' Um romance


que eleva ao
absurdo a existência
de zumbis e robôs
ideológicos
no Brasil como
uma forma de
alerta, lutando
assim contra o
enlouquecimento

coletivo de uma
nação

Rousseau se justifique na medida
em que a poesia considerada em
si mesma parece ir ao encontro
do que seria a origem da própria
linguagem. Mais adiante, como se
se confirmasse tal aproximação,
Rousseau acrescenta que as
línguas iniciais estavam sujeitas
à translação do sentido, às
figuras de natureza expressiva. E,
seguindo ainda o seu pensamento,
há a considerar todo o papel
que a harmonia -as línguas
originais "étaient chantantes" -
desempenharia nessa expressão
verbal. Falaríamos, então, na
importância que o ritmo tem na
poesia, o que, como se aqui nos
referíssemos às águas de um rio,
passássemos de uma margem, a
do significado, para a outra, a do
significante.
Fez-se atrás uma referência ao
ser ou a seres. Neste caso, tratar-
se-ia de seres imaginados, tendo
sempre em conta a relação que

''


Passamos da dignidade
suprema do ser para a
fragilidade tão nossa
da vida, porque é nela
que se corporiza a
linguagem

a artigos de jornal, e que servem
como tema do que vai aparecer
na sequência. Neste. universo
pós-humano, não há a figura do
narrador. O romance é organizado
como se fosse um big brother em
que assistimos ao que acontece
nos cenários mais remotos
através de câmaras, que filmam
tudo e colocam imediatamente
na internet, numa alegoria à
onipresença das redes sociais,
e a chips instalados nas pessoas
que vigiam os seus pensamentos.
Ninguém mais escapa·aos registos
contínuos. Nesta mecânica, as
cenas são episódios captados pelo
sistema de controle.
Loyola cria uma narrativa que
se assume como imagem gravada.
A fragmentação, portanto, será a
matéria estrutural do romance, que
cresce caoticamente para criar no
fruidor o sentido de desorientação
neste futuro em que todos estão
perdidos, desmemoriados e vigia-
dos. Neste tempo distante e próxi-
mo, o país é um caos administrado
por presidentes provisórios que se
sucedem e por corruptos que usam
tornozeleira eletrónica. Esta insta-
billdade das instituições cria uma
existência fluída, de multidões que
não se reconhecem mais em um
país tornado abstração geopolítica.
Os personagens se perguntam a
toda hora se estão no Brasil.
Usando alegorias e referências
diretas a fatos.da história recentfs-

através da linguagem se estabelece
entre imagens, a qual linguagem
cria ou inventa uma nova expressão
que é também conhecimento.
Mas aquela mediação de natureza
estritamente lógica e abstrata
recua neste caso. Podemos falar,
agora, de uma imediata comunhão,
o ato mesmo de se tornar comum,
de comunicar. Por isso um livro de
poesia dá-nos palavras.
Mas de que doação aqui
se trata? Em toda a criação
artística importa considerar o
presente -ond,e se situa ou se dá
essa comunicação -, o passado


  • que corresponde à tradição
    --e o futuro -que corresponde
    à inovação, isto é, à rotura ou ao
    modo de ir ao encontro de um
    horizonte de expectativas. Cada
    obra de arte corresponde sempre
    a uma transformação. Ganhando
    ai forma, passa a fazer convergir
    em si e, depois, a partir de si
    mesma toda a força comunicativa
    ou expressiva que é, afinal, a
    sua razão de ser. Este é o motivo
    que faz com que, se lançarmos
    o nosso olhar para a história de
    arte, se verifique que nela não há
    um progresso, mas apenas uma
    transformação resultante desse
    diálogo ou encontro da arte com
    o tempo. Em poesia poderíamos
    falar em transfiguração, porque
    nela é recorrente o recurso a
    figuras, desde a imagem até à
    simbolização, o que revela o
    sentido tanto múltiplo como único
    de cada palavra. JL

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