Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

8· educação


jornaldeletras.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL


Desburocratizar a Educação


EDUCAÇÃO E MEMÓRIA


Paulo Guinote


ti O tema é recorrente, assim como
o lamento. A atividade docente
tornou- se um emaranhado de
formalidades e burocracias que
consomem tempo, disponibilidade
mental e em nada ou muito pouco
contribuem para as aprendizagens
relevantes dos alunos, antes se
limitando a exaltar a "representa-
ção" do que se afirma ter feito ou
ir-se fazer.
A tendência vem de longe,
começou na última década do
século XX à medida que os deci-
sores políticos e administrativos
passaram a exigir que os profes-
sores se preoc.upassem mais em
registar o que fazem (ou preten-
dem fazer, ou é suposto fazerem,
ou que dizem ter feito) do que
propriamente em fazê-lo. A essa
evolução, muito marcada a partir
de meados dos anos 90 do século
XX, não é estranha a progressiva
erosão da relação de confiança da
tutela em relação à classe docente
e a necessidade que sentiu de fazer
com que os professores tivessem
sempre o pesado ónus da prova em
todos os seus atos, com destaque
para a justificação da avaliação
dos alunos.
Por isso, o rasto em papel
tornou- se uma constante em
toda e qualquer atividade, de um
simples projeto de trabalho com
uma turma até ao registo das mais
irrelevantes ocorrências em sala
de aula. É fácil verificar quando as
principais editoras passaram a in-
vestir na produção de "agendas do
professor" com múltiplas grelhas
para registos diversos, evoluindo
depois para uma especialização
com agendas para os diretores de
turma e para os professores de
determinados ciclos ou discipli-
nas. Qualquer arquivo morto de
um professor que tenha dificulda-
de em livrar- se de papelada velha
tem umas dezenas dessas agendas.
Depois começou o reinado do
excel.
Com o século XXI, a deriva
burocratizante teve uma progres-
são exponencial com a expansão
dos suportes digitais, porque
tudo passou a ficar registado em
duplicado ou triplicado. Os meios
digitais trouxeram uma paradoxal
hiper-burocr acia e uma hiper-
bolização dos procedimentos de
controlo do trabalho docente.
Qualquer grelha passou a ficar
arquivada em papel e em suporte
digital, quantas vezes em dupli-
cado (uma cópia na escola, outra
para o docente, não vá dar- se o ·


caso de algum recurso), com fi-
cheiros guardados no computador
e na cloud, na pen de serviço e em
disco rígido. Alegando a facilida-
de, portabilidade e flexibilidade
das "ferramentas", as exigências
em matéria de registo perderam
qualquer limite razoável. Tudo é
motivo para uma nova platafor-
ma, um novo aplicativo, uma nova
base de dados. Se possível sem
possibilidade de sincronização
ou possibilidade de exportação
de dados, como acontece com os
próprios serviços do ministério da
Educação na sua relação com as
escolas.

A CADA NOVA \'AG..\ MA\.RO
OU :\IICJH>nREFOR~IISTA na
Educação estão associadas novas
exigências burocráticas, que se
vão sobrepondo numa estrati-
grafia da irracionalidade em que
os leigos dificilmente conseguem
acreditar quando ouvem a sua
descrição. De acrónimos varia-
dos a números que simbolizam
normativos legais, passando
por procedimentos, tudo ganha
uma di~ensão algo onírica. A
Educação tem uma linguagem
própria, cujo hermetismo alguns
cultivam como se fosse sinal de
excecionalidade. Se aqui escrever
que quando o 319 foi substituído
pelo 3/2oo8 se deu uma mudança
de paradigma no enquadramen-
to dos alunos com dificuldades
de aprendizagem, mas que o
54 permitiu a flexibilização dos
seus procedimentos, os mais
de 10 milhões de portugueses

''


Com o século XXI, a
deriva burocratizante
teve uma progressão
exponencial com a
expansão dos suportes
digitais

A principal inovação
de que necessita
a Educação é a da
desburocratização
e a consequente

descomplicação do que
é simples

não professores não perceberão
nada. E o mesmo acontecerá se eu
afirmar que o PAPI decorrente da
abordagem multinível preconiza-
da pelo 54 permite que os alunos
beneficiem de medidas universais
sem necessidade de um RTP ou de
avaliação pela EMAEI, assim como
os alunos que antes beneficiavam
de um CEI podem agora dispor
apenas de um PEI, mas nesse caso
é importante mobilizar os recur-
sos do CRI e/ou do CRTIC. E para
tudo isto é necessário recolher e
codificar "evidências".
E depois temos as "grelhas", as
famosas e OD1Dipresentes "gre-
lhas". Em diferentes formas e
cores.
O sarcasmo habitual com
que se fala nas "grelhas" resulta
da sua multiplicidade, quantas
vezes para efeitos redundantes ou
meramente circunstanciais. Às
grelhas podem- se acrescentar os·
formulários com origem êentral
ou local, que quase todos os anos
é necessário rever para acrescen-
tar um detalhe e deitar fora todo
o material do ano anterior que
sobrar e se pensava ser utilizável.
Não nego, porém, que nas escolas
há pessoas que rejubilam com
este estado de coisas, que ado-
ram rever cada cabeçalho a cada
início de ano letivo ou acrescen-
tar mais uma fila ou coluna para
se colocarem cruzes. Ou novas
opções que desdobram as anterio-
res ou as parafraseiam. Podemos
escolher entre "empenho" e
"responsabilidade", entre "atitu-
des" e "comportamentos", entre
"capacidades" e "competências".
Há "domínios" e "subdomínios";
"objetivos principais" e "secun-
dários", "gerais" e "específicos".
Pouco nos faz refletir mais sobre a
perda de sentido do nosso tempo
de vida do que estar horas a
decidir quais são as "categorias"
a aplicar numa planificação anual
porque há sempre uma mudança
na terminologia oficial ou num
fetiche pessoal.

lí'WWIJIII:tde abordagens balísticas
dos alunos e das aprendizagens
defender a necessidade imperio-
sa de registar todo o "processo".
Ou criticar-se uma visão arcaica
do ensino, padronizadora, "feita
para a média" e depois fazerem-se
"formações" em que a mensagem
central em termos de prática é a
da produção de grelhas de obser-
vação, monitorização e avaliação
do mais pequeno aspeto do que
deveria ser um trabalho pedagógico
liberto desses constrangimentos.
Aliás, quanto mais alguém exalta a
"flexibilidade e autonomia", mais
insiste na necessidade de fazer a
sua rigorosa e rígida representação
burocrática. Encontrefl}..um guru
da abordagem do aluno como um
todo e encontrarão alguém com
uma capacidade quase infinita para
desdobrar esse todo em càtegorias,
subcategorias a um nível que bor-
deja o subatómico.
A principal inovação de que
necessita a Educação é a da des-
burocratização e a consequente
descomplicação do que é simples.
A modernidade digital deveria
ser sinónimo de simplificação e
aligeiramento burocrático. Não do
seu inverso.

\'()t: CONCLUIR FSTA DJ<;JH.S -
mm pouco acessível ao leitor
comum com uma situação pessoal,
por muito que desgoste de quem
exibe as suas práticas como uma
espécie de modelo sagrado. Faço- o
para que se perceba que tudo pode
ser mais simples, mesmo se tradi-
cional e mais "século XX".
No âmbito da disciplina de
Cidadania e Desenvolvimento, os
alunos da minha direção de turma
(7º ano) decidiram desenvolver
temas já abordados no final do
6º ano em História e Geografia
de Portugal e produzir um jogo
didático s.obre poluição e reci-
clagem (o Eco-Jogo) em suporte
físico tradicional (e não uma app),
que gostariam de levar para jogar

com os alunos das duas escola do
agrupamento onde tinham feito o
12 ciclo. Falou-se nisso e na neces-
sidade de pedir a colaboração de
outras disciplinas como Ciências
Naturais (para verificação de
alguns conteúdos específicos) e
Educação Visual (para produção
do tabuleiro do jogo, das cartas
com perguntas e outros acessó-
rios). Contactei com as minhas
colegas através de um método
arcaico - a conversa pessoal na
sala de professores - e tudo ficou
combinado sem ser necessário
recorrer a qualquer documentação
adicional. Sim, registei o "projeto"
na base de dados do Plano Anual
de Atividades do Agrupamento,
mas fiquei por aí.
O trabalho foi sendo feito nas três
disciplinas até estar concluído sem
que se sentisse a falta de um crono-
grama por escrito ou fichas de moni-
torização dos progressos. Concluído
em final de maio, o jogo foi levado às
escolas do 1º ciclo, tendo os alunos do
7º ano ensinado os seus colegas da pré
e 1º ano a jogá-lo em duas sessões em
que foram acompanhados por mim
e pelas minhas colegas e em outras
sessões combinadas com as docentes
do 1º ciclo. O rasto em papel resu-
miu- se a poucas folhas A4 com as
autorizações de saída da escola- sede
pelos encarregados de educação e ao
papel do Seguro Escolar.
Não sei se o trabalho desenvol-
vido foi "inovador", mas sei que foi
gratificante para os alunos. E sei que
foi, por certo, "autónomo", mesmo
se à moda antiga. Pela novilingua
educacional, desenvolveram- se
articulações horizontais (inter
e transdisciplinares) e verticais
(inter- ciclos), transversalizou- se o
currículo, flexibilizaram- se plani-
ficações, partilharam- se experiên-
cias. Pessoalmente, acho apenas
que fizemos o nosso trabalho. Com
satisfação. Sem excrescências bu-
rocráticas. Mas temos fotos para o
provar ... as indispensáveis "evidên -
cias" para provar que se fez o que
foi feito .• n.
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