Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

24·ARTES


JAZZ

'
A caça


dos pinguins


André Fernan-
des é um dos
mais seguros
guitarristas
nacionais,
com mais de
uma dezena
de discos gravados e uma presença
constante nos palcos, desdobrando-



  • se em projetos e colaborações que
    ultrapassam as nossas fronteiras.
    Chasing Penguins, nome do coletivo
    que deu origem ao seu mais recente
    disco, reúne um grupo de músicos
    belgas e Fernandes, num projeto que
    tem a sua marca.Chasing Penguins
    pratica um Jazz moderno, que
    possui muito da herança de Miles
    na eletricidade que o percorre, mas
    também na presença de elementos
    parasitas (piano -guitarra - bateria)
    que constituem afinal o pano de
    fundo sobre que Fernandes cons-
    trói as composições que revelam
    a sua presença. As composições
    de Fernandes, quatro em sete, são
    muito caracteristicas dele, relativa-
    mente simples, mas engenhosas nas
    harmonias e nas m elodias, que diria,
    muito portuguesas na nostalgia. As
    próprias intervenções do saxofo-
    ne de Steven Delannoye parecem
    por vezes evocar Jorge Reis nessa
    melancolia, que apenas se esvai no
    desenvolvimento. Curiosamente
    esta faceta possui como contraponto
    a energia e a eletricidade, por vezes
    explode, como no tema final, do co-
    letivo. Música sólida e estimulante, e
    até porque creio que as personalida-
    des dos músicos belgas ainda não se
    revelaram neste primeiro disco, eu
    creio que ainda ouviremos falar dos
    Chasing Penguins.


> Chasing Penguins
CHASING PENGUINS

Reza a lenda
que Lisboa não é
terra de gaitei-
ros, a prática
do instrumento
tem tradição nas
terras do norte
da perúnsula, mas não se alastrou
tanto a sul. O que fazem os Gaitei-
ros de Lisboa, banda fundada em
1991 , é inventar uma tradição à sua
medida. Muitas das canções que eles
constroem procuramo- las em vão
em cancioneiros antigos. Mas se por
agora nada se encontra, estamos
certos que em tempos futuros o
reportório dos Gaiteiros será inscrito
e confundir-se- á com os demais
cancioneiros tradicionais. A banda
de Carlos Guerreiro é pois um caso

SECÇAO

A terceira paixão


A existência de uma terceira paixão
de Johann Sebastian Bach, segundo
o Evangelho de S. Marcos, faz parte
das mais antigas lendas associadas
às obras perdidas do compositor
alemão. Possíveis reconstruções, a
partir de cantatas sacras do Mestre
de Leipzig e do seu contemporâneo
Reinhard Keiser, num 'puzzle' mais
ou menos sofistlcado, foram sur-
gindo ao longo dos anos, destacan-
do-se, em particular, a tentativa
do cravista, maestro e musicólogo
Ton Koopman, publicada no início
do ano 2000, em que o líder da Or-
questra Barroca de Amesterdao se
assumia como discípulo do mestre,
na composição dos recitativos.
Em 2009, porém, a lenda ganhou
uma dimensão real mais palpável,
superando décadas de investigação
musicológica, com a descoberta,
em São PetersbUigo, de uma versão
mais tardia do libreto de Picander,
que serviu de base a uma nova
interpretação da obra de Bach, em
1744, passados 12 anos sobre a versão
inicial. É a partir dessa versão -e das
pesquisas, reconstruções e adapta-
ções de coros e recitativos, propostos
pelo musicólogo alemio Alexander
GryclltoHk -que o maestro Jordi
Savall propõe uma nova e possível
leitura da eterna paixão petdida de
Bach, ~acredita estar mais pró-
xima da original, embora a recente
descoberta não seja acompanhada da
revelação de uma partitura autógra-
fa, nem de partes instrumentais.

de extrema originalidade e pertinên-
cia dentro do já rico panorama das
"novas tradições portuguesas". O seu
som, que passa até pela invenção de
novos instrumentos, é tão moder-
no quanto ancestral, com marcas
autorais inconfundíveis. Bestiário,
o suceSsor de Avis Rara, começa da
melhor maneira, com "Baleeiros de
New Bedford", um canto de mar,
escrito para o filme O Livreiro de
Santiago, de Zeca Medeiros, com a
participação do próprio Zeca. Muitas
vezes usando o humor como arma de
arremesso, com uma forte compo-
nente rítmica, no disco encontram-


  • se muitos bons momentos, como
    "Brites de Almeida", uma divertida
    homenagem à padeira de Aljubarro-
    ta. "Besta Quadrada", um descarrilar
    de insultos a bom ritmo. "Flecha",
    que beneficia da'participação do gru-
    po A Capela. Ou "Comprei uma Capa
    Chilrada", com a participação de Rui
    Veloso e um belo solo de guitarra, que
    desvia momentaneamente a música
    para os blues. Mas, como se diz em
    Roncos do Diabo, " o delírio das mo-
    ças é a gaita do gaiteiro"._


Gaiteiros de Lisboa
BESI1ÁRIO
Uguru

Anos de investigação em tomo des-
ta terceira paixão de Bach -depois
da "Paixão Segundo S. Mateus" e
da "Paixão Segundo S. João" -tem
permitido a historiadores e musicó-
logos afirmar, cada vez com maior
convicção, que se trata de uma
obra composta através da técnica
de "pastiche" ou da "paródia". ou
seja, através de um sistema, de facto
recorrente em Bach, que consiste
numa "montagem", adaptação
ou diferente contextualizaç1o de
composições existentes, em função
de novos textos.
A investlgação de Alfred Durr, na
década de 1960, indicava que Bach
teria utilizado grande parte da
"'fiauerode" ("Ode Fúnebre") BWV
198, para compor a "Paixão Segun-
do Sio Marcos". Tem sido essa a
referência dominante, no trabalho
de reconstrução, apoiada porém na
paixão de Reinhard Keiser (1674-
1739), outro compositor de Leipzig,
próximo do Kantor da Igreja de Sio
Tomé.
Com o libreto de 1744, Savall sente-


  • se porém confiante em centrar o
    seu trabalho em Bach e apenas em
    Bach. Compõe assim, pela primeira
    vez, uma versão com excertos de
    outras obras deste compositor,
    seguindo verso a verso o libreto de
    Picander, que acompanha os capí-
    tulos 14 e 15 do Evangelho de Sio
    Marcos. A "Trauerode", Savall junta
    sequências das duas outras Paixões
    de Bach, assim como de diversas


Caminhos vários


É o mais tradi-
cionalista dos
fadistas tradi-
cionais. Mas não
é apenas isso.
Ricardo Ribeiro
surpreende
com este Respeitosa Mente, onde
se desprende das amarras do fado
rumo a territórios por desbravar.
Todo o disco é construido em es-
treita cumplicidade com João Paulo
Esteves da Silva, um dos grandes
pianistas portugueses, que gosta de
trabalhar nas fronteiras do fado e
aqui assina grande parte das músicas
e das letras. O disco começa logo de
forma surpreendente, com "Depois
de n ",um tema com letra de Tiago
Torres da Silva e música do próprio
Ricardo Ribeiro. Segue, por linhas
tortas, provocando inquietação e
incerteza a quem ouve, solicitan-
do uma audição' atenta -e este é
um daqueles discos em que todas
as reaudições são compensadas.
Um álbum de emoções fortes, com
uma poética transversal ao fado, ao
flamenco, à música magrebina e do
Médio Oriente, onde se apontam

jornaldeletms.pt • 19 dejunho a 2dej ulho de2o1 9 / JL


cantatas sacras, numa sequêncla
que expõe passo a passo, tendo em
conta diferentes versões. Assim,
contribuem para a "Paixão Segundo
Sio Marcos", as coleções de corais
de Bach, as cantatas BWV 2, 54, 171
e 173 , a Oratória de Natal e 11 coros
provenientes de outras composições
de Bach.
.A edição em disco sucede à
apresentação ao vivo, durante o
ano passado, em diferentes palcos
mundiais. A gravação guarda aliás
as atuações em Versalhes, ocorri-
das em março de 2018, com David
Szigetvárl, Konstantin \\blff, Marta
Mathéu e Raffaele Pé, aos quais se
juntam as vozes de La CapeJ1a Reial
de Catalunya e a orquestra Le Con-
cert des Nations. O resultado ganha
em respiração, em espaço, em
experiência. 1\ldo é interiorizado,
vivido. Savalll oferece uma medi-
tação profunda que vai ao encontro
de Bach, do Amago.da sua obra.
Algo tanto ou mais poderoso quanto
se está perante a obra eternamente
perdida do mestre.
No riquíssimo percurso de Savall,

a edição dJscográflca permane-
ce sumptuosa. Além da "terceira
paixão", o maestro e musicólogo
catalão oferece também, num novo
álbum, as três últimas sinfonias de
Mozart -as Sinfonias n.lls 39, em Mi
bemol maior, 40 em Sol menor, e
41, "Júpiter", em Dó maior- , como
exemplo da maturidade do com-
positor, reunklas sob um mesmo
título, "O Testamento Sinfónico",
numa interpretação primorosa,
vivida e reveladora,
com Le Concert des Nations. Noutra
edição recente, Savall testemunha
a "apoteose da dança barroca",
com "LeTerpsichore" e "LePlaisirs
Champêtres", de Jean-Féry Rebel,
discípulo de Lully, violinista, maes-
tro e compositor de ópera de La
C~bre du Roi (Luís XV), e com
duas suites de danças, na síntese
tardia de Telemann, exemplo do
seu poder de observação. Uma
gravação fabulosa vinda da atuação
do Festival Styriarte de Graz, na
Áustria, em 2017, com o violinista
Manfredo Kraemer, no seu melhor.
MARIA AUGUSTA GONÇALVES

> La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations, Jordl Savall
PAIXÃO SEGUNDO SÃO MARCOS BWV 247
2CDAIIoVox

vários caminhos, sem definir uma
direção certa. Em "Alia Luna" canta
Leopardi em italiano. Em "Um es-
paço e duas Laranjas" musica Nuno
Moura. Em "Deserta liberdade",
Ramos Rosa. Em "Canto Francis-
cano", uma versão audaz do Fado
Menor, com um poema de Ary dos
Santos. E, no final, um instrumental
dedicado à mãe. 1\tdo isto é pautado
pelo piano de João Paulo e percussão
de Jarrod Cagwin. O percussionista
americano, especialista em ritmos.
do Médio Oriente, colaborador habi-
tual de Rabih Abou-Khalil, explicita,
de resto, a ligação deste disco com a
fascinante experiência que o fadista
português teve com o músico e
compositor libanês.

Ricardo Ribeiro
RESPEITOSA MENTE
Parlophone

Patxi


Aos 71 anos, Patxi Andión já ad-
quiriu o estatuto de lenda viva da
canção espanhola. Até porque tem
editado muito espaçadamente, o
que contribui para preservar a sua
imagem e torna cada novo disco um

acontecimento.
Assim acontece
coin este La Horn
Lobicdn, que
serve também
para assinalar
osSO anos de
carreira. Com uma produção muito
cuidada, recurso a violinos, con-
trabaixo, piano, percussão, e a uma
voz que não perdeu força, o disco
tem momentos de grande beleza.
Um tema que bem nos surpreende é
"Vaga no Azul Amplo, Solta", a partir
de um poema de Fernando Pessoa
e cantado em português. A ligação
de Patxi a Portugal é forte e antiga,
manteve a cumplicidade musical e
ideológica com grandes cantautores
portugueses, chegando mesmo a ser
expulso do pais pela Pide durante o
Estado Novo. Neste eloquente tema,
de alguma forma, homenageia a
língua portuguesa, nas palavras de
um dos seus maiores poetas, mas
imprimindo-lhe uma toada de mor-
na cabo- verdiana.

PatxiAndión
LA HORA LOBicAN
Lemurla

MANUEL HALPERN
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