Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

4·TEMA


jomaldeletras.pt • 19dejunho a 2 dejulhode 2019 / JL


) C .HICO BUARQ.UE <


Decerto muito mais famoso como compositor e cantor, ou, como a certa altura se usou muito, "cantautor", um astro de


primeira grandeza desde muito novo, ele é também um verdadeiro escritor: poeta, nas próprias "letras" das ou para as


suas músicas, ficcionista - autor de cinco romances de reconhecida qualidade, distinguidos com vários galardões - e


dramaturgo. E com toda a justiça lhe foi outorgado agora o mais importante Prémio de língua portuguesa, o Camões


(ler com. p. 3), como noticiamos na nossa última edição, da qual estava previsto fosse o Tema e a capa. Porém, a morte


de Agustina Bessa- Luís no nosso dia de fecho, segunda- feira, 3, obrigou-nos a mudar profundamente essa edição e a


adiar para esta tudo que a seguir se publica. Que, no entanto, nada perdeu em interesse e atualidade, e, assim, acaba por


celebrar também os 75 anos (as "bodas de diamante") de Chico, como os amigos e admiradores mais devotados em geral


simplesmente lhe chamam, 75 anos que completa exatamente hoje, 19 de junho, data da saída do JL


A escrita como destino


MARGARIDA GIL DOS REIS

Não há quem não conheça ou não
tenha ouvido falar de Chico Buarque.
O rei da música popular brasileira
(MPB), o imortal músico e compo-
sitor, mas também o escritor, agora
distinguido com o Prémio Camões.
Quando comemora o seu aniversá-
rio, o evento é noticia nacional. Os
canais de televisão repetem entre-
vistas e video clips. Os principais
jornais do Brasil publicam longos
artigos sobre o homem que ajudou
a definir a· cultura brasileira nas
últinlas décadas. Durante anos, foi
um leitor voraz, no entanto, admite
que quando escreve quase não lê.
E escreve sem pressa, resistindo à
tentação de apressar a escrita. Talvez
seja es~a a base de um trabalho con-
sistente que se reflete desde il década
de 70 e que fazem dele, hoje, um
escritor de merecido destaque.
Aos 18 anos, escreveu o seu pri-
meiro conto. O pai, Sérgio Buarque
de Hollanda, concordou em enviar
·a história para o editor literário da
Folha de São Paulo, mas só depois
de a ler primeiro. O pai aprovou e
a história foi publicada. Em várias
entrevistas, Chico recua sempre a
este momento, como sendo o tempo
exato em que nasceu como homem
de palavras. Os tempos de juventu-
de foram marcados pela escrita de
várias obras, de diferentes géneros.
Na verdade, ele sempre se desta-
cou como "cronista" nos tempos
de colégio. O seu primeiro livro foi
publicado em 1966, trazendo os ma-


Chico Buarque O músico e escritor completa hoje, 19 de junh~, 75 anos

nuscritos das primeiras composições
e o conto "Ulisses", mais uma cróni-
ca de Carlos Drummond de Andrade
sobre "A Banda". Em 1974, escreve
a novela pecuária Fazenda Modelo
e, em 1979, Chapeuzinho Amarelo,
um livro-poema para crianças. A
bordo do Rui Barbosa foi escrito em
1963 - 1964 e publicado em 1981. O
teatro fez também parte ativa deste
período, tendo escrito várias peças,
entre elas Roda Viva (proibida), Gota
d 'Agua, Ca1abar (proibida) e a Ópera
do Malandro. ·
A década de 70 terá sido uma das
mais produtivas da carreira de Chico
Buarque. Remontam a esse período
alguns dos seus principais trabalhos
na música, e foi a época em que, es-
tando mais ligado ao teatro, refletiu

na sua obra, de forma alegórica, a
situação vivida no pais. Mas a década
de 90 é marcada pela publicação do
seu primeiro romance, Estorvo. E um
aspeto da criação do autor pôde ser
confirmado -é impossível dissociar
as suas obras (sejam elas teatrais,
musicais ou literárias) do momen-
to histórico em que se encontram
inseridas.
Est~apresentaumenredo
próximo de um sonho (ou pesadelo)
vivido pelo protagonista, a partir
do momento em que um homem
estranho toca à campainha. Mesmo
sem reconhecer o visitante, o perso-
nagem dá inicio a uma desenfreada
fuga e passa a viver num turbilhão
de ideias e pensamentos. Galardoado
com o Prémio Jabuti, mostra uma

''


A música, como a
prosa, são no fundo
ambos contos líricos
de saudades, memória,
arrependimento e,
acima de tudo, de
aceitação de um destino

incessante busca pela palavra exata,
"numa peregrinação alucinada
em demanda das raízes perdidas",
como escreveu José Cardoso Pires

aqui no JL. O escritor, tradutor e
amigo, Eric Nepomuceno, conta
um episódio que reflete este ofício
incessante de procura da palavra
exata - "Como é que você chama o
sujeito que serve café no balcão de
um bar?". "Garçom". "Não, garçom
não. Garçom serve mesa". E depois,
soltou: "Servente". Retruquei que
servente até que é correto, afinal
o homem serve café. Mas que a
palavra estava condenada, pelo uso,
ao peão de obra. No livro, está lá:
"Servente".
Leyla Perrone- Moisés chegou a
comparar Chico Buarque a Marcel
Proust, pela forma como trata a
memória das suas personagens. O
certo é que vive cada personagem
que cria, como o protagonista de
Benjamim (1995), um romance de
forte conteúdo sinestésico, sobre-
tudo visual. A própria metáfora da
câmara como recurso fantástico e
despoletador do processo narra- ·
tivo já nos revela isso mesmo -os
cortes, as montagens e outros pro-
cedimentos peculiares do cinema
também. O romance joga com a


  • inlagem como se de um labirinto ou
    de um jogo de espelhos se tratasse.
    As imagens repetem-se, duplicam-
    -se e voltam-se a repetir. Na época

  • do lançamento de Benjamin, o
    escritor chegou mesmo a reconhe-
    cer uma certa influência da nouveUe
    vague na montagem de planos da
    narrativa. Como conta em várias
    entrevistas Eric Nepomuceno, "o
    seu nível de exigência e disciplina
    nos períodos em que se fecha para
    escrever é 'radical, prussiana'.
    Todo santo dia, ao final da tarde
    ele se desliga do mundo. E a partir
    das oito da noite, e até as duas
    da manhã, escreve de maneira
    obsessiva. Muitas vezes esquece o
    tempo, e vara a madrugada. Revisa,
    refaz, burila, rasga, num trabalho
    incessante. Escreve, revisa, rasga.
    Reescreve, revisa, rasga, mas
    avança um tanto. Uma espécie de
    Penélope que desfaz hoje o feito

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