Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

JL / 19 de junho a 2 de julho de 2019 • jomaldeletras.pt


IDEIAS · 25


O 1984, de George Orweu·


O que nos podem as distopias


ensinar?


Há 70 anos que foi publicado o famosO livro, tão infelizmente premonitório, e por isso cada


vez mais lido e citado. Para assinalar a data, no próximo dia 25 de Juitho, em Lisboa, às 14, na
Biblioteca Nacional, realiza -se um debate sobre o romance distópico em geral e sob:r:e 1984 em

particular - sobre o qual aqui escreve um especialista, doutorado em Estudos Anglo:-Portugueses


pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, onde é prof. e investigador. "No Ocidente, já não


é apenas o Estado que vigia, censura e manipula, mas também empresas privadas e interesses


financeiros e ideológicos, curiosamente com a autorização e colaboração ativa dos vigiados",


sublinha


ROGÉRIO MIGUEL PUGA

Há 70 anos, a 8 de Junho de 1949,
numa Europa brutalmente dividida
após a II Guerra Mundial, George
Orwell (Eric Blair, 1903_- 1950),
autor deAnimalFarm (1945) e de
outros escritos, publicava o seu mais
famoso romance Nineteen Eighty-
Four-1984-, cujo título original
fora The Last Man in Europe, e que
tem estado continuamente na lista
de bestseUers da Amazon, sobretu-
do desde a eleição de Trump e do
Brexit, conforme noticiou a impren-
sa mundial, logo em 2016. Aliás, o
estudo The Origins of Totalitarianism,
de Hannah Arendt, foi recentemente
reeditado e vendido como "um final
não ficcional para 1984".
A obra, datilografada pelo então
doente Orwell, na ilha escocesa
de Jura, dialoga intertextualmen-
te com Cadernos do Stibtemlneo
(1864), de Dostoevsky, When the
Sleeper Wakes (1899), de H. G. Wells,
Iron Heel (1908), de Jack London,
We (1924), de Yevgeny Zamyatin,
Brave New World (1931), de Aldous
Huxley, e SwastikaMght(1937), de
Katharine Burdekin, entre outras
distopias, e foi adaptada como
filme em 1954, 1956 e 1984, tendo
essas adaptações visuais tornado
a narrativa ainda mais famosa.
QuerDavidBowie (DiamondDogs),
quer os Eurythmics (1984: For the
Lave of Big Brother), entre outros
artistas, foram inspirados pelo
universo da distopia, a par de reality
shows como o Big Brother. Aliás,
termos e expressões atualmente

1984, adaptação cinematográfica por Michael Radford "Orwell ilustra os possíveis usos sociais da literatura,
a relação entre política e Imaginação literária, e, através da mentira, a Importância da verdade e da privacidade"

utilizados- como "doublethink",
"thoughtcrime", "computerspeak",
"newspeak", "unperson", "thought
police", "Room1o1", "telescreen",
"2+2=5", "ministryoftruth"e "me-
mory hole" -têm origem em 1984,
ícone cultural universal que já foi
traduzido para mais de 6o línguas.
Já o adjetivo 'orwelliano' é cada vez
mais usado para descrever contextos
sociais e regimes políticos opresso-
res e totalitários (temidos pelo pró-
prio autor), enquanto as caixas de
comentários de muitos jornais online
assemelham-se aos dois minutos de
ódio do romance. Através do encon-
tro 'O que nos Podem as Distopias
Ensinar?', o centro de investigação
Centre for English, Translation and
Anglo- portuguese Studies (CETAPS,
NOVA FCSH) e a Biblioteca Nacional
de Portugal assinalam, no dia 25 de
Junho, na Biblioteca Nacional, os 70
anos da publicação da referida obra,
que foi traduzida para português e

(re)publicada várias vezes ao longo
das últinlas décadas (1955, 1973,
1984, 1991), e debatem o interesse
e o poder sugestivo do romance
distópico em geral.
A complexa ação da narrativa
que Anthony Burgess, autor de A
Clockwork Orange, descreveu como
"uma lista apocalíptica dos nossos
piores medos", tem lugar num
futuro sombrio no qual a tecnologia
funciona como ferramenta que a
elite déspota manipula para con-
trolar, sem compaixão, a população
de Oceânia, onde o amor e o sexo
(entre o humanista Wmston e a
rebelde Julia) surgem como forma
de resistência e de confiança mútua,
mas são punidos porque aproxi-
mam os seres hUDianos e esbatem a
'bestialidade' imposta pelo regime.
A liberdade amorosa e sexual meta-
foriza, assim, as liberdades politica
e social, apenas possíveis após a
recusa ao controlo físico e psico-

''


A propaganda, a
vigilância e até o

estratégico dumbing
down parecem ter- se
acentuado , e, com
eles, a necessidade de
revisitar narrativas
como 1984 enquanto
'avisos'

lógico, rumo às possibilidades do
pisa-papeis de Wmston e ao irónico
"lugar onde não há escuridão".
Orwell e o seu futuro ficcional
têm sido utilizados em manifes-
tações recentes e nas redes sociais

para comentar e tornar consciente
a contemporaneidade, nomea-
damente fenómenos que à data
da publicação do romance eram
ficção científica e que se tornaram,
entretanto, realidade (vigilância e
propaganda), nomeadamente: ore-
conhecimento facial; a auto-trans-
crição (speakwrite); o ecrã interativo
que monitoriza a vida dos cidadãos
(telescreen); as "fortalezas flutuan-
tes" (semelliantes a porta - aviões
ou a ilhas artificiais, como as que a
China tem construído) que levam a
cabo as infindáveis guerras contra
inimigos longínquos; os 'versifi-
cadores', inteligência artificial (Al)
que compõe música e escreve obras
literárias como propaganda para o
Partido, enquanto a personagem
ficcional dos cartazes criados pelo
partido, Big Brother, e as expressões
"Big Brothet is Watching You" e "aU
animais are equal but some are more
equal than others" remetem para
questões como vigilância civil, fake
news, democracias enfraquecidas e
propaganda ideológica.
Essas mesmas conclusões (pre-
visões?) ficcionadàs num romance
que subverte a tradição ut(!pica ex-
plicam a utilização e a predominân-
cia desses conceitos e termos quer
na cultura popular contemporânea
(cinema, literatura distópica e ale-
górica, reality shows), quer na critica
literária de cariz mais ideológico,
das (re)leituras políticas e biográ-
ficas às feministas que analisam a
corrupção do poder maléfico e da
democrácia em regimes totalitários
através do estudo da sátira política e
metafórica à la Swift. A propagan-
da, a vigilância_ e até o estratégico
dumbing down (que associávamos
sobretudo ao período da Guerra
Fria) parecem ter- se acentuado
recentemente, e, com eles, a neces-
sidade de revisitàr narrativas como
1984 enquanto 'avisos'. Não admira,
portanto, que o videojogo alemão
OrweU permita aos jogadores assu-
mir o papel de um oficial do governo
que investiga a vida registada online
de pessoas suspeitas de participar
em protestos ou ataques bombistas
contra o governo da Nação, um pais
ficcional europeu.
Se, após a publicãção do roman-
ce, os conservadores britânicos o
reivindicaram como uma defesa do
capitalismo e do conservadorismo
porque criticava o regime e a socie-
dade soviéticos, o próprio Orwell es-
clareceu que o texto é uma alegoria
para todos os regimes totalitários em
geral e um aviso para o seu surgi-
mento no Ocidente. Aliás, como em
inúmeros outros casos, a critica lite-
rária sobre a obra tornou -se também
uma ferramenta de propaganda nada
ingénua, sendo 1984 utilizada por
católicos, conservadores, socialis-
tas, anarquistas e liberais como um
hino aos seus ideais. Em maio de
1944, cinco anos antes de redigir o
romance, Orwell escreveu uma carta
a Noel Wiilmett na qual abordou
quer algumas teses do livro - que
considerou, numa outra carta, "uma
fantasia [sobre o futuro] ... em forma
de romance naturalista" -, quer o
perigo da ascensão de movimentos
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