Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

26 ·IDEIAS


nacionais e de estados totalitários
que defenderão que "dois mais dois
são quatro", concluindo que muitos
intelectuais ingleses, ao contrário
da classe trabalhadora, estavam
prontos para aceitar "métodos dita-
toriais, policias secretas, falsificação
sistemática da História, ente outras
coisas, desde que sintam que isso
acontece do 'nosso' lado"..
Apesar de autores como V. S.
Pritchett, Milan Kundera e Harold
Bloom classificarem 1984 como um
mau romance, embora relevante,
e Orwell como profeta panfletista,
sucessivas gerações têm recorrido
ao romance em tempos de abuso e
de tumultos politicos, como evasão,
reflexão e até consolo terapêutico. A
obra não é, assim, tão datada como
muitos críticos previram quando dá
sua publicação porque se ocupa quer
dos efeitos do poder, da vigilância,
da propaganda, da ganância e da
cegueira dos politicos e dos outros
cidadãos (em detrimento do bem-
-comum) na sociedade, quer simul-
taneamente da natureza humana.
Em 2019,70 anos depois da publica-
ção de 1984, o próprio leitor do ro-
mance financia a rede de vigilância
que, até certo ponto, o monitoriza e
manipula (controla?) social e finan-
ceiramente, pois compra e atualiza
regularmente os dispositivos digitais
que utiliza através da internet, que,
por sua vez, sustenta essa elaborada
rede, e concede direitos de acesso e

''


O próprio Orwell
esclareceu que o texto
é uma alegoria para
todos os regimes
totalitários em geral
e um aviso para o
seu surgimento no
Ocidente

comercialização da sua informação
privada a empresas, redes sociais e
aos websites que visita.
No Ocidente, já não é apenas o
Estado que vigia, censura e manipu-
la, mas também empresas privadas e
interesses financeiros e ideológicos,
curiosamente com a autorização e
colaboração ativa dos vigiados, por
entre significados e significantes que
flutuam, tal como em 1984. ·como
as distopias em geral, o romance de
Orwell é ideológico e exige, portan-
to, inúmeras e dispares releituras,
satiricamente pessimistas, porque
o pior ainda poderá estar por acon-
tecer, e esse 'medo literário' poderá
levar à esperança e resultar em (re)
acção. Por essa mesma razão, ou
possibilidade, Nineteen Eighty-Four
ilustra os possíveis usos sociais da
literatura, a relação entre politica e
imaginação literária, e, através da
mentira, a importância da verdade e
da privacidade. .JL

jornaldeletros.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL


A PAIXÃO


DAS IDEIAS


GUILHERME D'OLIVEIRA MARTINS

Uma alegria profunda,


rasgada, furibunda ...


gustina foi sempre uma pessoa surpreendente.
O seu sentido de humor, mas sobretudo o seu
sentido crítico, eram únicos. Por isso admirava
a alegria de Camilo -"uma alegria profunda,
rasgada, furibunda que as inteligências estreitas
não entendem". Ugava, assim, permanen-
temente o pícaro e o trágico da vida. E, como
tantas vezes confessou, a permanente pesquisa
obre a humanidade encerrava a procura da
culpa e da sua razão de ser. Tinha uma paixão especial por Dostoievski,
não tanto para seguir os seus passos, mas por encontrar nele uma força
original. Muitas vezes, fazia misturar a realidade com a ficção. Isso di-
vertia-a intimamente. A vida, para si, era sonho e era drama. O célebre
episódio do casamento com Alberto Luis, atra-
vés de um anúncio de jornal, tem a ver com um
cenário romanesco que quis inventar. E assim
procurou forçar a realidade, como deus ex ma-
china. Ao ouvi -la contar esse momento, como
lhe ouvi várias vezes, ela ria-se intimamente
ao lembrar o que o padre lhe disse a certa
altura -"nem um táxi à porta da igreja ... " -ou
quando recordava um rato afoito a atravessar a
Confeitaria do Bolhão, onde os noivos celebra-
ram, com um chá, a singular boda ...

''


e pudesse mudar o curso da História. Gostava de cultivar episódios
folhetinescos. Vi, um dia, o Alberto e o João Bénard a disputarem
intensamente a propriedade de uma carta que, certamente por puro
gozo, Agustina dirigiu ao João, apesar de ter endereçado o sobrescrito
a Alberto. Nunca a situação se esclareceu. O mistério permaneceu - e
o caso demonstra bem como a personalidade de Agustina gostava de
alimentar universos romanescos.
E se estes universos eram avidamente procurados pela escritora,
também vinham ao seu encontro, como aconteceu com a carta de
Teixeira de Pascoaes, descoberta depois do poeta ter morrido, no seu
espólio, sobre a leitura atenta que fizera de Mundo Fechado. Dizia ele:
"Tratl!--se de uma escritora de raça, dotada de excecionais qualida-
des visionária e dotada de um raro instinto do real. Sem este instinto
há só literatura e mais nada. Se os românticos
excederam a realidade, caindo na falsidade, os
chamados naturalistas ·cometeram o pecado
contrário, e tornaram-se inferiores à natureza.
A autora de Mundo Fechado não praticou esses
erros. E, por isso, a felicito com o maior entu-
siasmo". O episódio vale por si e Pascoaes, que
estava no fim da vida, e já não lia as obras que
lhe mandavam, abriu uma exceção e revelou
a fina qualidade crítica que possuía. Agustina
usaria, aliás, esse acontecirilento extraordinário
em Os Quatro Rios, para descrever a angústia
de um jovem perante o silêncio de um escritor
consagrado a quem enviara uma obra na qual
punha toda a esperança de se tornar conheci-
do. Aliás, falando de Pascoaes, não podemos
esquecer outro romance, O Susto, em boa hora
recentemente reeditado, com um magnifico

Quando conheci pessoa)mente Agustina,
quase tudo o que ouvira dizer sobre ela corres-
pondeu à realidade, mas ao vivo era muito mais
interessante e misteriosa do que todas as lendas
que à sua volta se desenvolviam. Grandes ami-
gos meus tinham uma paixão absoluta pela sua
obra e pela sua força - e a verdade é que essa
aura se revelava de forma fantástica na pessoa
que encontrei e de quem tenho saudades. Os
seus diálogos eram desarmantes. Nunca fazia o
comentário que esperaríamos. Abria-nos sem-
pre os olhos para o outro lado das coisas que
nos passava despercebido. Estou a pensar na
extraordinária admiração por Maria Agustina
de Alberto Vaz da Silva e João Bénard da Costa.
Contra ventos e marés, foram dos primeiros e
chamar a atenção para a genialidade da escri-
tora. E tão persistentes souberam ser que obri-
garam tantos distraídos a ler com olhos de ver
a sua escrita. Frederico Lourenço tem um belo.
ensaio onde descreve um curioso ciclo, iniciado
pela extraordinária admiração da geração de
seus pais pela escrita de Agustina, continuado
no sentido crítico do jovem que desconfiava

Agustina foi sempre uma
pessoa surpreendente. O
seu sentido de humor, mas
sobretudo o seu sentido

prefácio de António Feijó, onde Agustina encena
um encontro entre figuras que representam
Pascoaes e Fernando Pessoa - salientando a sua
superior admiração pelo autor de Maranus ... No
entanto, a família de Pascoaes não ficou agrada-
da com o retrato imaginário dado no romance ...
Ossos do ofício ...
crítico, eram únicos. Ligava
o pícaro e o trágico da vida.

E a permanente pesquisa
sobre a humanidade

Um dia fui com Agustina até Amarante, em
homenagem à sua VIla Meã. Era um sábado
glorioso, com a temperatura tépida do fim da
primavera. A natureza estava como Agustina
gostava, ridente e viva. Depois de termos deba-
tido os mistérios de A Sibila, numa iniciativa de
escolas e professores, em torno de complexas
relações do poder, subimos em excursão, lado
a lado, até ao primeiro degrau do Marão e a

encerrava a procura da
culpa e da sua razão de ser

de tão radical admiração e terminado num
verdadeiro reconhecimento da genialidade da escritora. António José
Saraiva disse-o claramente: não tinha dúvidas sobre estarmos perante
um nome máximo nas nossas letras de sempre - isto, com a autoridade
especial de se tratar da apreciação de um dos nossos maiores mestres
na história da literatura.
A escrita de Agustina era torrencial e a sua letra (como insistiu
Alberto Vaz da Silva) era reveladora de uma força inesgotável. Essa era a
letra que Alberto Luis (devo lembrá- lo com muita admiração) meti-
culosamente decifrava, revelando a prosa em todo o esplendor. Várias
vezes Eduardo Lourenço me chamou a atenção para a grande energia
contida no riso dela e para o seu caráter cortante. Era uma ironia que
contagiava, sobretudo porque fazia questão de deixar claro que (pelo
menos na aparência) não se levava demasiado a sério e que gostava
verdadeiramente de ver o mundo às avessas, como se ela quisesse

romancista, olhando a paisagem que se estendia
na frente do autocarro onde seguíamos, lembrou
com júbilo as giestas batidas pelo vento e as aras de pedra onde o gado
se abrigava - e veio à baila um livro de Pascoaes, Duplo Passeio, pelo
humor que continha. "A arte de pedir, ó padre António Vieira, é a única
arte nacional. Está para a Lusitânia como a escultura para a Grécia".
E Agustina ria, ao lembrar ainda, a frase do poeta: "Quem pede é um
ladrão amável, digno de toda a simpatia". -"Já reparou, por certo (dis-
se-me então), afinal somos um pais pedinte ... Veja bem que não tardará
alguém aí...". "Pedir é uma realidade em que cabem todas as ilusões.
É um dormir, deixando os dentes a fazer a sua função de morder, e as
mãos a de voar come as borboletas". Agustina "lia Pascoaes com uma
devoção que só pertence à maturidade da criança que nunca se perde
dentro de nós ( ... ) Este Pascoaes é bem o meu padrinho nas Letras.
Alegro-me disso ... " (DN, 2.10.1993). E assim olhava a realidade que a
cercava à procura do que a pudesse espantar e até divertir. .JL
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