Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

JL / 19 de junho a 2 de julho de 2019 • jomaldeletms.pt


AUTOBIOGRAFIA


IMAGINARIA


Periferia


ada poeta é fruto inexplicável. Não
simplesmente como limão que dá na
macieira, pêssego que dá na figueira,
mas enquanto veio de sangue a nascer
da pedra, toada de vento na clausura
de um punho, abismo escavado na
alvura do papel. Todos os poetas são
um lugar sem previsão em mapa
algum, e acontecem por profunda
identidade estrangeira, numa língua que não coincide
exatamente com a de ninguém. Levar à boca o poema é
experimentar encontro e viagem, na junção impossível
de partir e de chegar num só gesto. Levar à boca o poema,
em "saliva", o corpo banhado em "suor", é inevitável
febre da vida, declaração de intensidade, protesto contra
as padronizações e contra o inevitável efémero que nos
caracteriza.
O aparecimento de um poeta é, por isso, o acontecimento
de uma singularidade ostentando métodos falhos de
integração no mundo onde coincidimos todos. Uma
singularidade com ansiedade pelo inteligível mas que,
por definição, se inscreve pelo lastro de opacidade, pelo
irresistível e trágico
mistério, o insanável
mistério. Nunca é coisa
pouca o acontecimento
de um poeta. O caso de
Sérgio Almeida, agora
entrado na prestigiada
colecção "o oiro do
dia", é uma abundância.
Sua "língua roça na
língua de Luís Vaz de
Camões", fecunda,
plena de sentidos. Sua
língua, tão perto da
nossa, é prova de outra
coisachegando. Um
universo que se abeira
ao convívio dos que
observam a escuridão
existencial, a escuridão
e a incompletude
essenciais. Os que sabem

''


A melancolia co~tida
de Sérgio Almeida
não é da tradição

portuguesa, feita de
pranto ou desalento, é
mais da ordem de uma
angústia questionadora
que .procura tanto
diagnosticar quanto
denunciar

que cada palavra é protesto e é insuficiência.
Sublinho a dimensão do inexplicável porque Periferia
(Ed. Modo de Ler, XX pp., XX euros) é essa declaração de
perplexidade profunda perante o mundo. É um elenco de
observações que não admitem o normal do engenho do
mundo. A realidade é colecção de indefinições, por mais
que queiramos aceder a verdades, só podemos dar por
sabido aquilo que aceitamos enquanto margem de erro,
coisa oblíqua, certo nervo, como enfoque que nos obstina
mais do que a evidência encontrada. A poesia de Sérgio
Almeida (SA) é o seu enfoque obstinado, o que significa que
ausculta nessa escuridão essencial uma aspereza frori.tal,
a impressão de que somos votados a constantes rejeições,
excluídos, e o percurso é feito sem aceder ao centro, ao
núcleo privilegiado, burguês, onde talvez todos os sentidos
se percam, onde talvez o papel da poesia seja nenhum.
Lidamos com uma poesia do espectro da ferida, golpe
assumido que não prevê sua cicatriz. O sujeito poético
colhe sobretudo a notícia de que vamos falhar. Aqueles
que observa desconhecem a importância de cada coisa e
estão como incautos. O verso prevê até sem sobressalto,
antes com uma melancolia contida, já sarcástica, ao mesmo

V ALTER HUGO MÃE

Sérgio Almeida Poeta e jornalista

tempo reconhecendo como triste a condição dos incautos,
bem como aceitando a contingência de tudo propender
para o ridículo. A melancolia contida de SA não é da
tradição portuguesa, feita de pranto ou desalento, é mais da
ordem de uma angústia questionadora que procura tanto
diagnosticar quanto denunciar. Sua acidez, desde logo para
com o país, é rotunda.
Talvez a pessoa amada seja o elemento de controlo, aquilo
que sustenta o caminho, que produz justiça na relação com
a ferida. A pessoa amada detém a capacidade redentora ou,
ao menos, detém a capacidade de escapar à mentira. Diz o
poeta: "E entre a sombra estrelar das formas/ detenho-me
com vagar no teu perfume,/ ciência de todas as coisas."
É nessa fascinada alteridade que está o conhecimento
superior, aquilo que há a saber do que é estar vivo.
O modo como SA chega à pessoa amada, essa figura
legitimadora da angústia e produtora da resiliência, é
inusitado. Os seus poemas mascaram- se nas panorâmicas
do mundo para chegarem, aqui e ali, às figuras sagradas
pelo amor. O amor, por isso, está soterrado pelo agreste da
comunidade. A política, o aparato envaidecido do contexto
literário, a Europa, estão implícitos em inúmeras passagens,
também discutindo os portugueses como periféricos, os
lúcidos como periféricos, os poetas como periféricos.
Entre essa pulsão mais vulnerável, atenta a
pequenas subtilezas e quase ternuras, e outra pulsão
substancialmente irónica, corrompendo o verniz social,
o discurso 9,e Sérgio Almeida é um combate bravo. Para
dispor e expor seu afeto e desencanto, bem como dispor
e expor sua repulsa, este livro está por espinho Cravado.

. Propaga a ferida, uma que já é da linguagem, essa ·
estrangeira, mas que é também da ética, ou da ciência,
diria. A poesia serve para sondar tudo quanto há para saber.
Dizia Picasso: "Aquilo que imaginas é real". Na vastidão
poética, como no sentimento amoroso, está a realidade
mais profÚnda. Sim, tão efetiva e tão nossa quanto sempre
estranha, estrangeira.JJ.


IDEIAS· 31


O HOMEM


DO LEME


MANUEL HALPERN

Kitly R & Key Kid


Todas as terças- feiras decorria a reunião da
equipa de gestão de conta, em que a cliente nor-
malmente não particifava, porque tinha mais
que fazer. Na verdade, apesar do espaço formal
de análise ter esse ritmo, as comunicações entre
os operadores eram constantes e já se sabe que
para formar um perfil minimamente interes-
sante é preciso um grupo versátil de profissio-
nais. Kitty R era uma cliente premium e eles não
se podiam descuidar. Quando estava em digres-
são, tudo se tornava mais fácil, bastava partilhar
imagens arrojadas de momentos em palco e dos
bastidores, retratos com fãs, c~ aquela sensa-
ção de que, apesar de· ser um ídolo inalcançável,
estava mesmo ali à mão de semear. O problema
residia nos longos intervalos, em que era preciso
alimentar os muitos fãs com material semi- pri-
vado, para os manter focados, não fossem eles
transitar para a cantora rival.
Cetina M. tinha uma tarefa específica e
nada fácil. Cabia- lhe responder às inúmeras
mensagens que Kitty R recebia nas redes sociais.
Mesmo naqueles jogos íntimos, em que mais
ninguém estava a ver, havia que manter a
imagem. E as instruções eram claras: Kitty R era
atrevida, deveria insinuar-se e dar a entender,
até ao mais distante dos fãs, que poderia ser bem
sucedido. Por isso, as coisas iam avançando,
às vezes em mais do que cem frentes em
simultâneo. Cetina M. traçara como único limite
não ripostar a nudes, pelo menos quando estes
apareciam fora de contexto.
Dentro desta amálgama de bate- papos,
um dia surgi\1-lhe uma mensagem do rapper
Key Kid, uma das estrelas emergentes da
altura, já com milhões de discos vendidos em
todo o mundo. Cetina M. tinha indicações
claras para responder com particular
parcimónia a figuras públicas. E, seguindo as
indicações, foi transmitindo aos superiores
os desenvolvimentos das conversas com o
rapper. Só que Key Kid tinha um perfil ainda
mais atrevido. E as coisas encaminharam-se
descontroladamente para o encontro físico.
Numa dessas reuniões das terças- feiras,
onde a própria Kitty R participou por
videoconferência, foi decidido que seria
valorizante para a sua carreira estreitar
relações com Key Kid ou mesmo ter um ca5o.
Kitty R ficou atrapalhada com a ideia. Mas
a empresa fez um briefing que permitiu à
cantora, sem dificuldade, discorrer ao jantar
sobre dois ou três temas que reforçassem uma
ideia de leviandade e inteligência. O pior era
o que vinha a seguir. Kitty R não se sentia
minimamente preparada para ter relações
sexuais. Era algo que lhe provocava nojo, um
repúdio visceral. Apressaram- se a encontrar
solução. Quando ao final da noite entraram
naquele quarto de hotel, bêbedos e charrados,
houve uma subtil troca de corpos. Quem se
deitou naquela cama não foi Kitty R, mas sim
a sua gestora de conta.
E foi assim que, por fortuna do destino,
Cetina M, a eficientíssma writer de Kitty R,
conheceu Pierre Velásquez, o dotado assistente
de Key Kid, com quem haveria de casar dois
anos mais tarde. JJ.
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