Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

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JL


PARALAXE


Escrever como


o generalíssimo Kutuzov


Ninguém contmria o marketing por muito tempo.
Ninguém contmria os fabricantes de bem fazer
o bom cidadão.

Marketing, de Fernando Namora

ernando Namora (FN) dizia que não escre-
via para agradar ninguém, mas que "sendo
propósito da arte dirigir- se a alguém (pois de
contrário seria expressão privada)", é normal
que se imagine ou identifique o leitor. Ao
fazê- lo, chega à conclusão que o escritor se
dirige a um conjunto de leitores ao mesmo
tempo que se dirige a cada um em particular.
Não é raro, para quem lê, sentir que o livro
foi escrito especialmente para si. A consciência coletiva refl.etida
no livro é ao mesmo tempo consciência individual. Em De visione
Dei, Nicolau de Cusa usa com.o alegoria urna experiência comum,
provocada pela fruição de certas pinturas. Muitos sentem quando
olham para alguns retratos que o olhar do retratado os segue. Esse
olhar dirige- se simultaneamente a todos, mas também se fixa em.
cada um. Nicolau de Cusa usou esta ideia como argumento teoló-
gico, mas serve perfeita-
mente para a descrição do
impacto possfvel de um
livro: atingir vários e cada
um. Ser o reflexo de um
tempo e de urna cultura e
ao mesmo tempo olhar nos
olhos de cada leitor, com
todas as suas diferenças e
manias, e fazê-lo sentir a
estranha cumplicidade de
um amigo de longa data.
Esta mesma coincidên-
cia de opostos, o todo e o
particular em simultâneo,
também se verifica no
tempo, e alguns livros
perduraram e atravessam-

''


Fernando Naritora
cultivava uma
inclemência

implacável e
rigorosa para
com o seu próprio
trabalho


  • no, imunes às inevitáveis mudanças sociais, permanecem mo-
    dernos. FN contraria ainda a ideia de que a qualidade só é acessível
    às elites, assim como a postura púdica e casta, mas relativamente
    disseminada no seio dessas mesmas elites, de que a literatura deve
    alhear -se do prazer e ser praticada com solenidade e recato pudi-
    bundo: ''Aqui, todavia, se põe de novo o debatido problema da le-
    gibilidade de urna obra, quanto ao preconceito aristocratizante de
    que o génio não é para consumo corrente (então porque o foi em
    Stendhal, Tolstoi, Camus, Malraux, Huxley, Soljenitsin, etc.?) e de
    que apenas a mediocridade é aliciadora e abordável. Decerto para
    escândalo de alguns, é o citado Barthes que vem agora afirmar que
    a categoria literária não pode nem deve ser sinónimo de "enfado",
    que, pelo contrário, o "prazer" dado por um texto é meritório, re-
    volucionário e mais coisas que não ouvíamos dizer há anos. Deste
    modo, a existência de l.un 'público' (feio palavrão ... ) possa de novo
    a importar como parãmetro estimável, uma vez que esse público,
    se existe, é porque a obra, feita de dores e esperanças comuns, de
    acertos e desacertos com o seu tempo, possui a vitalidade a que
    poderia aspirar." (Encontros, Fernando Namora)
    Dito isto, há que sublinhar que esse prazer não é urna conces-
    são que o autor faz ao gosto do público, mas urna consequência
    possível da literatura (assim como o Sol não brilha com o propó-
    sito de nos iluminar). E tampouco se deve concluir que todos os
    livros geniais são acessíveis, mas sim que a inteligibilidade não


Fernando Namor~ "Escrever é uma Inesgotável paciência"

é sinónimo de génio ou falta dele. De resto, FN cultivava urna
inclemência implacável e rigorosa para com o seu próprio traba-
lho. Quando lhe perguntaram se ele emendava e reescrevia ou se
fixava na forma inicial, ou seja, se era elaborador ou impulsivo,
respondeu assim: "Não me parece que um escritor 'impulsivo' seja
necessariamente aquele que se fixa na forma inicial. O escritor
pode ser impulsivo e, no entanto, sujeitar depois essa impulsi-
vidade a um paciente trabalho de afinação." Mircea Cãrtãrescu,
porque a respeito do oficio de escrever as perguntas repetem- se,
respondeu de forma semelhante a essa questão-devendo qual-
quer coisa à alegoria platónica - e comparou a escrita, a sua, a um
cavalo e ao respetivo cavaleiro. A parte impulsiva, animal, convive
sem paradoxo com a outra.
Namora, menos sucinto, desenvolve um pouco mais o tema:
"Por outro lado, há livros que se escrevem quase de rajada e outros
que pedem urna feitura laboriosa. No meu caso, e abstraindo, por
conseguinte, do modo como certos temas atuam sobre o escri-
tor, tenho evoluído acentuadamente para um trabalho pausado.
Reescrevo quase tudo, as vezes que entenda necessárias. Sou
talvez um impaciente-paciente - e não se veja paradoxo na
definição. Uma figura magistral de Guerra e Paz, o generalissimo
Kutuzov, que acabou por vencer Napoleão apenas com as armas
da astuta perseverança, dizia que há dois guerreiros invencíveis:
a paciência e a porfia. Ora, escrever exige esses dois guerreiros.
Escrever é urna inesgotável paciência. Creio que a tenho tido. Os
malogros ou as injustiças doem-me, mas não me vergam. Pelo ·
menos até hoje. Ao reconhecer erros cometidos, literários ou ou-
tros, a minha reação mais constante é ~começar tudo de novo."
(Encontros)
Confrontado com urna outra pergunta que também é repetida à
saciedade, quais os paralelos entre a medicina (poderia, com outro
escritor, ser a música, a arquitetura, o direito, etc.) e a escrita, FN
encontrava essas interceções e tangências. No livro Retalhos da
vida de um médico, sobre um parto, escreveu o seguinte: " -'Se.
quer fazer alguma coisa, senhor doutor, saiba que a criança está
nas nalgas. Está presa no osso da rabadilha'. Aquela frase ficou in-
teira nas minhas recordações, ainda hoje me assusta os ouvidos."
É possfvel que Fernando Namora sentisse que também há livros
que ficam presos em ossos e exigem a porfia inv~ncfvel de um
generalissimo Kutuzov. .JL

jornaldeletras.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL


NÇALO M. TAVARES

F(Jrça e beleza


1


Duas excelentíssimas senhoras:
Maria Velho da Costa e Agustina.
A escrita de Agustina é bem
terrena e sobre esta terra e a gente
que a pisa. Numa frase, ela disseca
uma situação ou uma pessoa, mos-
trando o trágico e muitas vezes provocando
no leitor um riso que é também desespero.
Um exemplo rápido. Em O Manto, falando
sobre a pobreza e a magreza, Agustina fala
· dessas "crianças nuas, com as omoplatas
salientes como rudimentos de asas". E esta
expressão arrepia qualquer leitor: omoplatas
excessivas, simbolo terrivelmente anatómico
da penúria, mas omoplatas que se trans-
formam em tentativas físicas de sair dali;
asas rudimentares-que não estão, portan-
to, acabadas, e que por isso impedem que
·essa criança seja outra coisa que não aquele
presente duro. São asas, mas são rudimen-
tares. Mas também: são rudimentares, mas
são asas. E, neste segundo sentido, é como se
a anatomia, ao mesmo tempo que mostra a
fragilidade das crianças, mostrasse também
o impeto de escapar ao destino da pobreza.
Uma simples expressão e estamos diante
de um clarão que nos faz entender melhor
a pobreza, "as omoplatas salientes como
rudimentos de asas".

2


Em Maria Velho da Costa vemos
, outra coisa, algo da ordem da
altitude: o colocar da linguagem
a sobrevoar os acontecimentos. Como
se a ling}lagem fosse posicionada com
precisão numa linha entre a terra e as
nuvens; linguagem-testemunha, mas não
testemunha com linguagem apressada,
pelo contrário.
Em O Amante de Crato, por exemplo,
Maria Velha do Costa, semelhante a urna
arquiteta com uma segunda lucidez, faz apa-
recer algumas das mais certein!s definições
de casa, como se a pontaria fosse não uma
questão de força ou perícia, mas de delicade-
za; atingirás o alvo pela delicadeza com que
tratas a linguagem.
"De dentro de casa não se podia ouvir
nenhum dos brados e rugidos da cidade,
nenhum grasnar do bosque. A casa só tinha
a música de si, uma única nota cava, como o
mugir de um búzio."
A linguagem em Maria Velho da Costa não
é da ordem do dissecar violento como são as

. frases de Agustina, mas sim da beleza que
nos faz ver.
Coisa tão difícil, tão rara, e que aparece
em cada página de Maria Velho da Costa:
uma beleza que clarifica: ''A casa que brilha
lá alto como um claro navio suspenso na
linha do mar." .JL

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