Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

JL / 19dejunhoa2dejulhode2019 • jomaldeletras.pt


ontem, não à espera do improvável
Ulisses, mas da palavra exata".
Assim se chega ao terceiro
romance, Budapeste, 2003, um labi-
rinto de espelhos que não é resolvido
na trama, mas nas palavras, como os
poemas. O exílio, já o sabemos, é um
tema recorrente na sua vida e no seu
trabalho. Budapeste é a história de
José Costa, escritor que regressa de
um congresso de autores anónimos
e é obrigado a fazer uma escala
imprevista na cidade que dá titulo
ao romance, desencadeando uma
série de eventos que constituem o
centro da trama. O livro é extraordi-
nário pelas suas observações sobre a
língua, a estranheza e o amor, pela
dicotomia entre a angústia e a váida-
de reprimida do escritor fantasma.
E nada é por acaso. Até os nomes
próprios são de jogadores do clube
nacional de futebol húngaro de 1954,
confidenciaria mais tarde o autor.
Como Budapeste, .também
Leite Dennmado (2009) volta a ser
premiado. A semelhança dos seus
romances anteriores, desde Estorvo,
em que se narra a angústia de um
homem perseguido por alguém que
não se conhece, Leite Derramado
também foca um dos seus temas
preferidos - a solidão. Este é, por
isso, um romance sobre glórias e
ruinas. Na altura do seu lançamento,
a crítica assumiu -o como o retrato
de um grande compositor. lão im-
portante ou mais que as presenças,
aparecem ausências neste romance.
Um vazio que define um mundo
concebido não apenas pelo que nos
dá, mas pela consciência do que nos
escapa (ou derrama) por entre os
dedos. Nesta obra, Chico confron-
ta os temas que fazem o Brasil se
contorcer, mas também a memória
e a culpa: "a memória é uma ferida
enorme".
Mais próximo de nós está o lan-
çamento de O Innão Alemão (2014).
Nele, Chico Buarque relata o seu es-
panto ao saber, já adulto, que o pai,
o historiador e professor brasileiro
Sérgio Buarque de Hollanda, teve um
filho na Alemanha em 1930, quando
foi correspondente em Berlim
de um jornal brasileiro, O Jornal.
Mergulhamos assim em São Paulo,
nos anos 6o e 70. Tanlbém aparece
a sinistra ditadura, à qual Buarque
se opôs desde o começo, em 1964, e
que o forçou ao exílio, em 1969. Mas,
acinla de tudo, somos convidados
da casa da família, emparedada nos
livros do seu pai.
Numa das muitas entrevistas, Chico
Buarque comentou que quando uma
ideia nasce "pode servir tanto para
um romance de 200 páginas _quanto
para uma música com 15 disticos". A
música, como a prosa, são no fundo
ambos contos liricos de saudades,
memória, arrependimento e, acinla
de tudo, de aceitação de um destino


  • a palavra. Esse mesmo destino que
    o fez ganhar, em2019, o prémio li-
    terário mais importante do universo
    da língua portuguesa .• JL

  • Margarida Gil dos Reis é membro do Centro
    de Estudos Comparatistus do Faculdade de
    Letras da Universidade de Usboa e dirige a
    sua revista, Textos e Pretextos


Um criador (também) nos versos


PALAVRA DE POESIA


António Carlos Cortez


ti Trovador, cronista,
malandro, político, amante,
Chico Buarque é um poeta de
enorme talento; um fazedor
da linguagem com uma forte
consciência poética. Leitor
atento da tradição brasileira,
a que vem dos cantares
populares, das modinhas e dos
rimances de matriz portuguesa
e africana, as suas canções-
poemas desaguam, numa fase
inicial do seu percurso, no
samba (a fundadora "P'ra ver
a banda passar") absorvido em
João Gilberto e temperado para
mais tarde se encaminhar para
um universo onde melancolia
e euforia, meditação e ironia
se harmonizam em toadas de
densa melopeia.
Leitor e discípulo de certa
aspereza aprendida em João
Cabral de Melo Neto, que lhe
ficou devendo a popularidade
de Morte e Vida Severina, mas
também reconhecido herdeiro
de António Carlos Jobim, na
melodia versátil, na cadência
vocal e rítmica, na respiração
grave e caudalo!ia da palavra
romântica, Chico Buarque é o
construtor de· um idioma só seu,
que irrompe da memória culta
para se oferecer no calor de
um verbo que se dá, inspirado,
como um corpo que se ama, ao
património literário que este
prémio consagra. Essa memória
matricial, da língua e dos
pais e avós; dos seus mestres
e companheiros de viagem,
plasma-se em composições
de enorme ressonância
afetiva ("Paratodos", de
1993 é exemplo magno dessa
constante palavra-homenagem)
a que o poeta empresta uma
inventividade difícil de
igualar ("Meu pai era paulista/
Meu avó, pernambucano/
O meu bisavó, mineiro/
Meu tataravó, baiano./ Meu
maestro soberano/ Foi António
Brasileiro").
Chico Buarque é um
justíssimo vencedor do Prémio
Camões. Não importa (pelo
menos a mim não me importa)
se essa atribuição é um efeito
mimético do Nobel que se deu a
Bob Dyhtn. É possível. Portugal
é dado a imitações. Mas não
importa e não terá sido esse
o inconsciente argumento. O
que se passa é que não ficamos
indiferentes às sedutoras
imagens e à sensível nostalgia
de versos que nos transportam

Chico Buarque, com o pai, Sérgio Buarque de Hollanda "A sua palavra dá-nos vida
densa e Intensa, para vermos melhor o mundo"

para lugares e tempos que
também foram nossos. Corpos
amados, desejados; tempos
de juventude idealista e cuja
energia cada poema resgata,
creio que, a pesar na decisão
dos jurados está a certeza de
que muita da grande poesia em
português encontra nele um
dos seus mais exímios cultores.
Versos como os de
"Tatuagem" ( Calabar, 1973)
são marcantes, gravam- se na
memória do leitor: "Quero ficar
no teu corpo/ feito tatuagem/
pra te dar coragem! quando a
noite vem/ ( ... ] I E também me
perpetuar/ em tua. escrava/
que você pega, esfrega, nega/
mas não lava// Quero brincar
no teu corpo/ feito bailarina/
que logo s'alucina, salta e
t'ilumina/ quando a noite
vem// E nos músculos exaustos/
do teu braço/ repousar frouxa,
murcha, farta I morta de
cansaço// Quero pousar feito
cruz/ nas tuas costas/ que te
retalha em postas/ mas no
fundo gostas/ quando a noite
vem// Quero ser a cicatriz/

''


Um poeta de enorme
talento; um fazedor
da linguagem com
uma forte consciência
poética. Precisão
métrica, palavra com
peso, intérprete do
real que o circunda,

dando voz aos vários
brasis que há no Brasil.

O protesto contra
a censura legitima
essa polifonia e a sua
voz torna-se a voz de
todos, catalisando
frustrações e anseios
de um país às portas
da democracia que
teria devir

risonha e corrosiva/ marcada
a frio, a ferro, a fogo/ em
carne viva"). A atenção aos
sons vocálicos ("frouxa",
"murcha", "farta", "morta"), as
subtis aliterações ("exaustos" I
"braços"), a beleza de imagens
aéreas, leves, vincando o
erotismo feliz e ao mesmo
tempo torturado (brincar no
·corpo amante."feito bailarina",
assim ama a mulher que nos
alucina no encontro furioso e
desejante e que justifica até o
genial paradoxo de a mulher
se ver como "cicatriz risonha
e corrosiva"), tudo isso enche
de humanidade esta poesia
nascida para ser cantada.
Outros versos há na poética
de Chico que transformam o
poema no lugar onde lirismo
e teatralidade servem uma
polifonia complexa. Aí voltarei.
Nos seus textos, palcos do
mundo experimentado e
interpretado, encontramos
as saborosas redondilhas de
ParaTodos, misturadas com
metros exigentes noutros textos
de grande mestria técnica: os
tetrassílabos em "Samba de
Orly", o hexassilábico em "Você
vai me seguir"; os decassílabos,
endecassílabos e mesmo
alexandrinos de "Cotidiano"
("Todo o dia ela faz tudo sempre
igual/ Me sacode às seis horas
da manhã/ Me sorri um sorriso
pontual/ E me beija com boca
de hortelã").

. Precisão métrica, palavra
com densidade, com peso, a
poesia do autor de Estorvo (seu
romance de estreia), é, como
referi, intérprete do real que o
circunda, dando voz aos vários
"brasis" que há no Brasil. Nos
chamados "anos de chumbo"
da ditadura brasileira, em 1976,
e na sequência do AI-s de 1968,
o cantor-poeta, abandonado
os palcos após a temporada no
Canecão com Bethânia durante
cinco meses, empresta a sua
poesia ao teatro. Depois de
Calabar, Gota d'Água, com que
vence o prémio Moliere em duas
categorias.
O protesto contra a censura
legitima, pois, essa polifonia
a que me referi. Nas letras de
Meus Caros Amigos ("Olhos
nos olhos", "Vai trabalhar
vagabundo" e "O Que será"),
a sua voz torna-se a voz de
todos, catalisando frustrações
e anseios de um país às portas
da democracia que teria de

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