Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1
6. TEMA / CHICO BUARQUE
jomaldeletras.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL

vir. Depois do "Passeio dos
Cem Mil", depois do exílio
italiano, depois das mortes
de Vladimir Herzog, diretor
da TV Cultura Paulista, e de
Manuel Fiel Filho, operário
metalúrgico, como tecer um
cântico contra os militares de
Geisel? Como fazer da poesia
mais que a palavra empenhada,
a palavra libérrima? "Mas o
que eu quero lhe dizer/ é que
a coisa aqui está preta", eis
uma fórmula absoluta. Com
"O que será que será", Chico
deixa a timidez charmosa do
seu canto e assume, para lá de
todas as conotações de artista
firmemente combativo contra
o fascismo, a condição de voz
maior do seu país - e maior
porque nele a poesia se presta
a ser o encontro da palavra na
Agora em tumulto.
Por isso, num poema como
"Mulheres de Atenas" é todo
um Brasil que chora a alegria
adiada. É todo um país que,
olhando para Portugal onde a
festa tinha sido bonita, intui
que os algozes da palavra
de poesia se preparam para
de novo matar e prender
os maridos e filhos dessas
mulheres simbólicas. Poesia-
aviso, o trovador não larga
nunca a faceta interventiva:
"O que será que será/ que
todos os avisos não vão evitar/
Porque todos os risos vão
desfiar/ Porque todos os sinos
irão repicar/ Porque todos
os hinos irão consagrar[ ... ]",
conjugando, sabiamente, com
Francis Hime ou Jobim, músicá
e palavra.
Gostaria de, em jeito
final, partilhar duas fortes
impressões que me causam
a poesia de Chico Buarque.
Saber que Ruy Belo inaugurou
a sua primeira aula de
Português, ,em Madrid, em
1971/72, dando a ouvir a
alunos espanhóis o poema
"Construção" (magna
virtuose poética, com rasgos
dum surrealismo finíssimo,
com uma labiríntica frase
onde a subversão de sentido
enriquece o dramatismo
narrado) e relembrar o
impacto da sua música-
poesia nos anos 8o quando,
deslumbrado, ouvi "Cálice",
isso ainda hoje me toca
fundo. Um poeta português
homenageando a linguagem
de um poeta- músico carioca
na capital espanhola; os versos
"de vinho-tinto de sangue",
essa inata palavra de poesia
que esplende em "As vitrines",
"Futuros Amantes", tudo isso
me comove e entusiasma. À
poesia, à literatura, pede- se,
nestes tempos de carestia da
sensibilidade, isso mesmo:
que nos dê vida. Que tenha
espessura. A palavra de Chico
dá-nos vida densa e intensa,
em palavras que se dizem para
vermos melhor o mundo. .JL


Chico Buarque ao JL


Escrever 'entre quatro paredes'


ti Ao longo do tempo, o JL dedicou
muitas matérias a Chico Buarque
(ler com. de JCV na p. 3), que
algumas vezes fez ainda a capa do
nosso jornal. Uma delas foi a edição
n^2 489, de 19 de novembro de 1991,
tendo como motivo próximo a sua
estreia como romancista, com a
publicação de Estorvo, nesse mês
editado em Portugal -após ter
sido lançado no Brasil em agosto
do mesmo ano e vendido cem mil
exemplares em pouco mais de dois
meses. O JL entrevistou -o então,
a propósito do referido primeiro
romance, da escrita de ficção, sua
ligação ou não à sua extraordinária
obra como grande autor I criador
da nova música popular brasileira,
etc.
Foi uma longa entrevista, de quase
três páginas, feita por José Carlos
de Vasconcelos, que na entrada
lamentava nela não terem cabido
outros aspetos de que gostaria de
ter falado com Chico, ou mesmo
de que falou mas tiveram de ficar
de fora -e ainda de (por razões de
urgência de 'fecho', presume-se)
certas respostas do compositor I
escritor I cantor "não terem o
tratamento que o código escrito
imporia". l,)e qualquer modo, é
uma entrevista que nos parece
cheia de interesse; em particular
por nos dar um testemunho
vivo da sua primeira experiência
como escritor, a experiência de
alguém que sendo super famoso
noutro dominio resolve suspender
tudo para a ela se dedicar. "Para
escrever este livro saí para dentro
de um quarto escuro", disse-nos
a certa altura -e foi o título da
entrevista.
Assim, e não sendo possível, para a
presente edição, entrevistar o novo
Prémio Camões, lembramos. re-
produzindo-os, algumas passagens
daquela entrevista.

Jornal de Letras: No teu livro é
óbvia a presença constante, quase
diria obsidiante, como elemento da
própria ação, da violência wbana
e de um sentimento de falta de
saídas -por tsso até já se falou
de Estorvo como uma espécie de
metáfora do Brasil. No entanto,
penso que antes de tudo-é um
romance da incomunicabilidade e
da solidão. Será?

Chico Buarque: Sem dúvida. Posso
entender que se leia essa metáfora
no livro, ele exprime uma certa
visão da sociedade brasileira, mas
essa não foi a minha intenção. O
que me moveu foi a trajetória da
personagem central, uma trajetória

feita, de facto, de incomunicabili-
dade, de desencontros, de incom-
patibilidade com o seu meio.

Tem-se falado do livro como
nada tendo a ver com nenhuma
música tua. Ora, julgo ver alguma
aproximação entre &torvo e
a tua belissima "Construção·,
quer numa espécie de estrutura
cin:ular de ambos, quer porque
o personagem do romance é um
desses, que «morre na contramio
atrapalhando o l!'áfego», ou
«atrapalhando o sábado» ...
Nunca tinha pensado nisso (pau-
sa) ... Certamente há em ambos
algo de tautológico, de obsessivo,
e ao mesmo tempo de metamor-
foseado, como caleidoscópico.
De facto, nunca tinha pensado
em nenhuma ligação mais direta
entre este livro e qualquer música
ou letra minha, mas essa observa-
ção procede. É verdade, tem isso,
essa repetição, o personagem de
"Construção" também é um estor-
vo, há na canção um humor cáus-
tico que também está presente no
livro. Lembro-me claramente que
uma das primeiras vezes que cantei
"Construção" num show, numa
frase dessas, ou «atrapalhando o
tráfego» ou «atrapalhando o
sábado», ouvi uma risada nervosa
na plateia. E este é o tipo de reação
que várias pessoas têm tido em
relação ao livro: um riso nervoso,
constrangido, angustiado.

Como é possivel que o Cbico
Buarque, que escreveu coisas
tio belas e tio diferentes, com
a espérança por dentro, tenha,
chegado ao desespero deste livro?
Isso tem a-ver sobretudo com
o autor ou com a evolução dos
acontecimentos e da situação no
mundo e no Brasil?
Eu não pretendo dizer que vivi essa
angústia toda, toda com certeza
não, mas vivi uma boa parte dela: a
falta de perspetiva ideológjca,
esse vazio que se deu nos últimos
anos, e que no Brasil é muito vio-
lento. Isto contribuiu sem dúvida
para o clima do livro, para esse
'desesperanto', para a 'desespe-
rança' desse personagem e de tudo
que o rodeia.
Durante o tempo que eu levei a
escrever esse livro eu não só não fiz
música como não ouvi música e
praticamente não li os jornais. Com
Fazendo Modelo aconteceu
justamente o oposto: diante de
uma situação de desespero e de
censura não houve a reação de
revolta. Então esse livro está cheio
de metáforas, de paródias, de no-

Chko Buarque com José Carlos de VaKoncelos, entrevistado pelo JL

tícias de jornal. Estorvo foi escrito
entre quatro paredes mesmo, foi
um livro do lado de fora do mundo,
mas dó lado de fora fechado. Para
escrever este livro saí para dentro
de um quarto escuro.

De uma forma ou de Outra para ti e
para muitos a canção era também
uma forma de intervenção. Isso
acabou ou pensas que quando
voltares à música pode acontecer
de novo?
Acredito que pode. Eu não sei até
que ponto este livro vai interferir
com a minha canção, é muito
difícil julgar; porque também
não fiz música depois dele. Para
ser exato, e anunciá-lo pela
primeira vez: consegui, um dia
antes de viajar para Portugal,
terminar a letra para uma canção
de António Carlos Jobim. É uma
música dessas feitas com um
tema de encomenda (nem por
isso desgosto ... ) para o Tom
Jobim ser homenageado pela
Escola de Samba da Mangueira,
no próximo Carnaval. Agora o
que vou fazer, o que pretendo
fazer, não sei. Tenho a impressão
que a música v:ai voltar a inter-
ferir na letra, não acredito que
escreva um 'estorvo musical', a
música vai-me solicitar outro
tipo de literatura-se posso cha-
mar assim às letras de música.
Mas depois de uma experiência
destas, também é difícil ima-
ginar que eu componha como
antes. Pretendo que cada nova
canção seja algo novo para mim.
E entre o meu último disco e o
próximo haverá sempre um "es-
torvo" no meio do caminho ...

Para lembrar Driunmond ...
Exatamente.

Vens de uma fanúlia intelectual,
foste criado no meio de livros,
teu pai era um grande senhor, um
académico, um homem brilhante.
Como é que isso te inftuenciou, ·
designadamente quanto às
leituras?
Foi na adolescência que eu
mais li e muito por influência
de meu pai. A minha tentativa
de aproximação a meu pai, foi
através da literatura. Meu pai
vivia fechado naquele escritório e
eu, que tinha um pouco de medo
desse escritório, porque era uma
criança barulhenta, mais tarde
comecei a tentar aproximar-me
dele através da literatura. E se eu
queria a aprovação de alguém era
ade meu pai.

Entio quem 'nasceu' primeiro:
o escritor ou o compositor, o
cantor, o homem de música?
Não tenho a certeza, porque me
lembro de muito pequeno ouvir
muita rádio, primeiro cantar e
depois inventar músicas. Mas
também me lembro, desde
criança, de escrever nos jornais
de colégio. Tenho até hoje
uma carta de quando morei
na Itália, dos 8 aos 10 anos de
idade, em que uma professora
americana, a despedir- se ,
me dizia que um dia ainda
leria urna novela written by·
Francisco Buarque de Holanda ...
Não sei o que a levou a escrever
isso, deviam ser redacções
escolares já com algum pendor
literário. ( ...... ) .JL
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