Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

8 * TEMA / CHICO BUARQUE


jomaldeletrus.pt • 19dejunhoa2dejulhode 2019 / JL


O poeta músico em (des)construção


MANUEL HALPERN

t i" Sei mais de gramática do que de
teoria musical", confessava Chico
Buarque, numa entrevista no final
dos anos 70, quando praticamente
ainda não tinha livros publicados
(apenas a novela Fazenda Modelo,
1974). Talvez esteja aqui a grande
chave para perceber tudo o resto.
Em Chico, letra e música fundem-


  • se como se se tratassem da mesma
    matéria. Isso não quer dizer que
    não se descubra interesse nas duas
    vertentes de forma separada. Várias
    letras de Chico Buarque são belissi-
    mos poemas, mesmo para quem as
    leia fora de um contexto musical.
    Tomemos como exemplo,
    "Construção" (1971), umdossells
    ex- libris literários. Chico convida-

  • nos a entrar num jogo de signifi-
    cados, num sistema quase matemá-
    tico, em que vai trocando a última
    palavra de cada verso. Uma técnica
    próxima do surrealismo, mas que
    não deriva para o absurdo, antes
    para a plurissignificação metafórica.
    Ao mesmo tempo, este dispositivo,
    faz com que a estrutura do próprio
    tema reforce a ideia de Construção,
    aglutinando a estrutura e o signi-
    ficado. Por outro lado, o cuidado
    silábico é extremo, a última palavra
    de cada verso é invariavelmente
    uma esdrúxula. Tal imprime uma
    musicalidade intrínseca do próprio
    poema, de forma muito original, já
    que encontra uma alternativa eficaz
    ao habitual sistema de rimas. De
    alguma forma, "Construção" já era
    uma música antes de que a melodia
    entrasse. Não obstante, a estrutura
    . musical é brilhante. Logo à partida,
    porque é uma canção sem refrão,
    em que tudo é sempre igual, embora
    diferente. Há um crescendo conse-
    guido sobretudo através das cordas
    e dos metais. Dá, também aqui, a
    ideiade ser uma música que se vai
    construindo, até ao seu clímax,
    quando Chico canta: "Morreu na
    contramão a atrapalhar o sábado".
    Um murro no estômago.
    Na versão gravada no álbum com
    o mesmo nome, Chico cola esta
    canção a "Deus Lhe Pague" (tema
    que aparece autónomo no inicio do
    disco). É como se sentisse a necessi-
    dade de deixar mais clara a mensa-
    gem - musical e literalmente. É uma
    junção perfeita, por parte de quem
    sempre fez coincidir cultura erudita
    e popular, numa espécie de fórmula
    construída por camadas, para
    tornar- se acessível a vários públicos
    e proporcionando diferentes níveis
    de leitura. Contudo, sempre ficou
    claro que a grande base, a grande
    referência é a música popular. Tudo
    o que ele faz tem essa intenção sim-
    ples, básica, que vai beber sobretu-
    do ao samba, mas também à bossa
    nova.Sãocançõespopulares,quese


sentem bem enquanto tal, indepen-
dente da qualidade da interpretação
e do facto que, dependendo das
épocas, se vestem com arranjos
mais orquestrais ou tradicionais.
Também a este nível ele sempre se
manteve 'autêntico' ,longes das
derivas experimentais de Caetano.
O curto experiment~mo de Chico
faz- se "entre tabelas".
Se o Deus de Caetano é João
Gilberto, que inventou a bossa na
sua guitarra, Chico nunca escon-
deu a reverência a António Carlos
Jobim, o grande maestro da bossa
nova e também, inevitavelmente,
a Vmicius de Moraes, o poetinha,
amigo do seu pai, autoapelidado
"o branco mais negro do Brasil".
Todavia, o samba sempre teve um
peso tremendo na sua obra. Aliás, o
próprio compôs para e desfiou com
a Mangueira.
A apetência pelo samba é notória
desde o primeiro disco, assim como
o potencial literário das letras.
Mesmo o seu êxito inicial, "A Banda"
(1966), esconde várias camadas e
uma mensagem politica e social. É
um tema popular, que revela uma
imensa alegria, um notável poder
descritivo, mas não deixa de deixar
um contraponto politico e social. "A
Banda" marcou tanto a sua carrei-
ra que ele, a determinada altura,
confessou estar farto da canção, que
lhe pediam para tocar constante-
mente, ao yivo. E no quarto álbum
(1970) acabaria mesmo por gravar
um desconcertante anti- banda, que
passou despercebido entre êxitos
maiores. Em "Agora Falando Sério",
Chico canta: ''Agora falando sério I
Eu queria não cantar I A cantiga
bonita/ Que se acredita/ Que o mal
espanta/ Dou um chute no lirismo/
Um pega no cachorro/ E um tiro no
sabiá/ Dou um fora no violino/ Faço
a mala e corro/ Pra não ver a banda
passar".
Nos primeiros discos, as canções
de amor falam vulgarmente de
abandono, é a Madalena que foi pro
mar e ele ficou "a ver navios" , a
Rita que levou "os meus 20 anos e
o meu coração", a moça que "está
diferente" e "Será que Cristina
Volta?". Mas também há músicas de
consolo, como "Morena dos Olhos
d'Água" e "Carolina". Muitos destes
temas são sambas tristes, que vão
por caminhos ~usicais distintos da
bossa nova. Contudo vai-se reve-
lando uma capacidade de retratar o
amor em toda a sua eomplexidade,
num sentido abrangente e difícil
de catalogar. "Retrato a Branco e
Preto" é de uma riquissima ambi-
guidade poéticà, fala de uma recaída
passional, através das memórias,
mas torna-se rico sobretudo pela
capacidade de trabalhar os tons de
cinzento das relações. Musicalmente
a construção também reflete essa
ambiguidade de sentimentos, como

um onda, que sempre que se chega
ao cimo volta-se cá para baixo.
Saltando no tempo, ambigui-
dade semelhante está em "Tua
Cantiga", primeiro single do seu
mais recente álbum (Caravanas,
2017), que se tornou polémi-
ca, sendo o músico acusado de
machismo: "Quando teu coração
suplicar I Ou quando teu capricho
exigir I Largo mulher e filhos e de
joelhos vou te seguir". É a mais
radical declaração de amor que
uma canção pode fazer. Brilhante.
Com um. sentido menos corrosivo, e
inequivocamente belo, já em 2006,
em Carioca, incluia uma simples
e eficaz declaração, em que faz do
amor um cume utópico: "Sonhei
que o fogo gelou/ E sonhei que

mim/ Que o amor vai longe assim/
Não foi você quem quis saber?".
Que crueldade ...
Chico é também um exúnio
retratista do quotidiano, tal perce-
be-se logo em "A Banda", mas tam-
bém em quadros como "Com Açúcar
e com Afeto" (1967), cantado origi-
nalmente por Nara Leão, que faz um
retrato de um típico funcionamento
machista. Um outro retrato do dia-
-a-dia está no tema que se chama
precisamente "Cotidiano" (1971).
Chico foi um das grandes vozes
na luta contra a ditadura militar e
contínua a fazer -se ouvir na atual
caminhada do Brasil para o obs-
curantismo. Logo no inicio disco
encontramos "Pedro Pedreiro", um
tema de influência neorrealista,

desta letra, ao mesmo tempo que
transmite a mensagem politica nas
entrelinhas. No final, despede-se
mesmo como se fosse uma carta:
''A Marieta manda um beijo para os
seus/ Um beijo na família, na Cecília
e nas crianças I O Francis aproveita
pra também mandar lembran-
ças/ A todo o pessoal/ Adeus". E,
já se sabe, quando em Portugal,
as nuvens se dissiparam com a
revolução de Abril, Chico escreveu
"Tanto Mar", que primeiramente
gravou ao vivo, num concerto com
Maria Bethânia, em que canta: "Eu
queria estar na festa, pá/ Com a
tua gente/ E colher pessoalmente/
Uma flor do teu jardim". Mas, com
os desenvolvimentos políticos em
Portugal, acabou por mudar a letra,

Fotograma do filme Quando o Carnaval Vier, de Cacá O legues Nara Leão, Chlco e Maria Bethânia

''


Um dos grandes
privilégios de ter
o português como
língu~ materna é poder
entender as canções
de Chico Buarque de
Hollanda

a neve derretia/ E por sonhar o
impossível/ Sonhei que tu me que-
rias". Isto para não falar de temas de
beleza imensurável, como "O Meu
Amor", cantado originalmente pela
sua mulher de então, a atriz Marieta
Severo, e por Elba Ramalho. Em
"Aquela Mulher", tema do álbum
As Cidades (1998), inverte a lógica
das canções de amor, optando pela
perspetiva daquele que ficou com a
moça. E canta para o ex dela: "Com
outros homens, ela só me diz/ Que
sempre se exibiu/ E até fingiu sentir
prazer I Mas nunca soube, antes de

enquadrado no espírito dós cantores
de intervenção. Mais à frente, em
"Gente Humilde", quase uma decla-
ração de amor neorrelaista, e além
do mais uma canção de grande be-
leza. Curiosamente, Chico Buarque
volta a falar dessa gente humilde,
·num dos seus mais recentes álbuns.
Em "Subúrbio" (2oo6), faz um
retrato daquilo que se esconde: "Lá
não tem moças douradas/ Expostas,
andam nus I Pelas quebradas teus
exus/ Não tem turistas/ Não sai foto
nas revistas/ Lá tem Jesus/ E está de
costas".
Voltando atrás, durànte a dita-
dura militar, alguns dos seus temas
tornaram- se hinos da resistência,
como "Apesar de Você", "Cálice" ou
"O Que será?" Nesse mesmo álbum,
Meus Caros Amigos (1976 ), uma mú-
sica construída por Francis Hime,
em jeito de "Carta para Portugal",
com o refrão: ''Aqui na terra tão
jogando futebol/ Tem muito samba,
muito choro e rock'n'roll/ Uns dias
chove, noutros dias bate sol/ Mas
o que eu quero é lhe dizer que a
coisa aqui tá preta". é de um talento
extraordinário a informalidade

gravando- a no álbum de 1978,
assim : "Já murcharam tua festa, pá/
Mas certamente/ Esqueceram uma
semente/ Nalgum canto do jardim".
Sempre que canta a música ao
vivo, como aconteceu nos últimos
concertos em Portugal, opta pela
primeira versão, que faz redobrado
sentido, atendendo à presente situa-
ção do Brasil.
Curiosamente, se procurarmos
no Spotify, a última entrada que
aparece, já em 2019, relativa a ele é
um álbum instrumental. Um apa-
rente contrassenso. Mas, ouvindo- o,
é inegável a riqueza daquelas melo-
dias, ali com um tratamento jazzis-
tico. Apesar de alguns temas serem
compostos por outros, como Francis
Hime, Edu Lobo ou Tom Jobim, é
indiscutível que Chico não é só pa-
lavra. A valência musical é profunda
e rica. Contudo, ouvir as melodias
despidas de letras sabe sempre a
pouco. O reflexo básico é, de segui-
da, pôr a tocar as versões originais.
Um dos grandes privilégios de ter o
português como língua materna é
poder entender as canções de Chico
.Buarque de Hollanda. JJ.
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