Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

JL / 19 de junho a 2 de julho de 2 0 19 • jornaldeletras.pt


CHICO BUARQUY TEMA * 9


Génio e cidadania


mansarda, não teríamos dúvidas
em o reconhecer como aquilo
que é -um extraordinário poeta,
por mérito literário próprio, e até
uma das vozes mais importantes
da Poesia de Língua Portuguesa
do último meio século, mesmo
que atuando na esfera da Canção
popular (como de resto tantas
outras vozes relevantes da Poesia
lusófona, de Vinicius de Moraes a
Vasco Graça Moura). Mas sucede
que Chico é também um dos
maiores compositores da Música
Popular Brasileira do nosso
tempo-em minha opinião, jun-
tamente com Caetano Veloso, o
maior desde Tom Jobim e um dos
maiores de sempre, ao lado de

RUI VIEIRA NERY

t[ Estamos em 1966, em plena
Ditadura Militar. No Festival
de Música Popular Brasileira da
saudosa TV Record (não confun-
dir com a máquina de propaganda
da IURD que hoje tem o mesmo
nome) o júri atribui, por sete
votos contra cinco, o primeiro
prémio a "A Banda", de Chico
Buarque, e deixa em segundo
lugar "Disparada", uma canção
de Geraldo Vandré , na voz de Jair
Rodrigues. "A Banda" era uma
celebração da festa popular, do
poder da música e da dança e da
própria energia vital da juven-
tude; "Disparada" aludia à luta
do povo nordestino por melho-
res condições de vida. Chico vai
falar com o presidente do júri e
recusa- se a receber o prémio se
este não for pelo menos dado ex
aequo a ambas as canções, porque
considera que a mensagem políti-
ca da canção de Vandré não pode
ser minimizada. Este episódio,
durante muito tempo desconhe-
cido e revelado mais tarde por
um dos grandes historiadores
da Música Popular Brasileira,
Zuza Homem de Mello, para lá de
demonstrar a força de caráter de
Francisco Buarque de Hollanda,
então com 22 anos, sinaliza bem,
já nessa fase, a postura ética e cí-
vica de invulgar coerência de que
sempre deu provas durante mais
de meio século de vida pública
e que está subjacente à sua obra
mesma quando nela aborda temas
de caráter intimista, sem aparente
conotação política.
Ainda que sempre ancorada
nesse pilar inabalável de cons-
ciência cidadã, a gama temática
da obra de Chico Buarque é , de
facto, muito ampla. Por vezes
centra- se na esfera dos afetos e
das relações interpessoais ("Eu
Te Amo", "A Rita", "Cotidiano"),
e aí dá provas de uma capacidade
invulgar de análise psicológica
e de construção de persona-
gens - como o fará igualmente,
por sinal, nos seus romances
(Estorvo, Benjamim, Budapeste ou
Leite Derramado). Outras vezes,
ainda nesse espaço aparente-
mente restrito à esfera "pura"
dos sentimentos, questiona, em
alguns casos até através de uma
escrita corajosa no feminino, os
códigos consagrados da hierar-
quia patriarcal, combate]ldo a
misoginia e a violência de género
("Olhos nos Olhos", "Teresinha")
ou denunciando a homofo-
bia ("Blues para Bia"). Muito
frequentemente enfrenta temas
de crítica social, combatendo
sob todas as formas a exclusão, o
racismo, o abuso do poder, avio-

,,.


Chlco Buarque "Uma referência Importante em vertentes distintas da condição
humana"

Uma das vozes mais
importantes da Poesia
de Língua Portuguesa
do último meio século,
mesmo que atuando
na esfera da Canção
popular, e um dos
maiores compositores
da Música Popular
Brasileira do nosso
tempo

lência policial ("Pedro Pedreiro",
"Construção", "Acorda, Amor").
E tem depois muitas canções
que se podem considerar já de
intervenção política militante,
como forma de participação ativa
no debate coletivo (vejam- se, ao
longo dos anos, exemplos emble-
máticos como "Apesar de Você",
"Cálice", "Meu Caro Amigo" ou a
recente "Caravanas"). Reduzi- lo,
por isso, a uma única faceta seria
empobrecer esta diversidade

de tópicos e de abordagens que
fazem dele uma referência tão
importante em tantas vertentes
distintas da condição humana.

um Noel Rosa, um Ary Barroso,
um Pixinguinha, um Cartola,
um Dorival Caymmi, um João
Gilberto e talvez não muitos mais
do que uma meia dúzia de outros.
Para lá de que é ele próprio, tanto
no palco como em disco, um
intérprete carismático e inimi-
tável, destacando- se mesmo do
seio de uma geração que conhe-
ceu vozes tão marcantes como as
de Elis, Maysa, Nara, Bethania,
Gal, Caetano ou Gil.

Se, em vez de os ter cantado,
Chico Buarque tivesse publica-
do estes poemas em sucessivos
livrinhos lançados por peque~
nas editoras obscuras de vão de
escada, de forma a corresponder
melhor ao nosso ideal român-
tico do génio incompreendido
sempre prestes a desfalecer numa

Vamos comer Chico


Já depois da entrevista com Adriana Calcanhotto,
na última edição, conversámos com a escritoro de
canções brasileira sobre a atribuição do Prémio
Camões a Chico Buarque. Optámos por reunir num
s6 depoimento oral o resultado da nossa conversa.

A riqueza da língua portuguesa está no facto de
ter 'várias línguas' dentro de uma língua só. Faz
com que Camões, Mário de Sá Carneiro, Mia
Couto, José Eduardo Agualusa falem todos a
mesma língua. Este prémio é muito justo, porque
Chico escreve em língua portuguesa de várias
maneiras, mas sempre com altíssimo nível. O
Chico só ainda não ganhou o Nobel porque por lá
não se fala português.
A questão do valor literário das letras de canções
é lateral e óbvia, nem sei porque se fala tanto
disso. Os grandes poemas gregos, os fragmentos
que sobraram, mostram uma poesia de um nível
que nunca mais de conseguiu repetir. E eram

canções. O que preservou aquilo, antes do registo
escrito, foi a transmissão oral, através da música.
Isso responde à questão.
Se há uma canção do Chico que gostaria de ter
escrito é " Bye Bye Brasil". Ouço- a desde muito
nova. Foi escrita para o filme de Caca Diegues e
tinha uma enorme pertinência naquele tempo,
mas não perdeu a atualidade. É um Chico
Buarque típico, mas que me comove muito,
há ali qualquer coisa de especial, que nem sei
explicar bem o que é. Tento que absorver tudo
aquilo, todas aquelas músicas, mas na hora da
criação finjo que nunca ouvi, senão torna- se
impossível criar. Há uma coisa muito bonita
que o Caetano diz: cada vez que sai um disco do
Chico ele próprio sente- se tocado e provocado, e
então grava um disco também. Por isso, o Chico,
além de tudo o que cria, também é responsável
pela criação de discos de Caetano. JLADRIANA
CALCANHOTTO

Mas a propósito do Prémio
Camões que em boa hora lhe foi
concedido - e como sucedeu, de
resto, ainda há poucos anos com o
Nobel de Bob Dylan-esta multi-
plicidade simultânea de talentos,
em vez de reforçâr o reconheci-
mento da qualidade superlativa do
domínio da Língua que é evidente
em toda a componente poética
da sua obra (e já não falo aqui do
m érito consag.rado da sua prosa,
que lhe mereceu, por três vezes,
o Prémio Jabilti, a maior distin-
ção literária brasileira), parece
ser antes invocada para lha não
reconhecer, c omo se, regressando
ao ideário do Romantismo, o bom
poeta devesse ser, por definição,
oficial de um só ofício, para não
dividir a sua lealdade por diferen-
tes musas.
Se o Prémio Camões se desti-
na, como reza o seu enunciado le -
gal, a premiar uma personalidade
que tenha "contribuído para o
engrandecimento e projecção da
Literatura de Língua Portuguesa"
e , "pelo seu talento e dedicação à
vida intelectual", engrandecido
"o património literário das cultu-
ras que encontram expressão na
Língua Portuguesa", então
dificilmente m.e ocorre outro
nome que mais mereça jun-
tar- se aos de Miguel Torga,
Virgílio Ferreira e Agustina,
de João Ubaldo Ribeiro, Lygia
Fagundes Telles e Jorge Amado,
de Craveirinha, Pepetela e Mia
Couto, de Sophia, Eugénio, João
Cabral de Mello Neto e Ferreira
Gullar, ou de Eduardo Lourenço e
António Cândido.
E não poderia sublinhar com
maior ênfase a importância
simbólica deste prémio num
momento em que no Brasil a
Democracia e a Cultura-preci-
samente os valores pelos quais
Chico Buarque lutou durante
toda a sua vida e as causas de
que foi, e continua a ser, uma
bandeira de combate - estão sob
um ataque cerrado sem prece-
dentes desde a queda da Ditadura
Militar. É da natureza humana,
e da própria autonomia estética
última do gesto criador, que nem
todas as boas causas produzam
necessariamente boa escrita,
e nem toda a boa escrita esteja
associada às melhores causas.
Mas é reconfortante ver exem-
plos de que, como no presente
caso, a genialidade criativa pode
estar associada plenamente à
responsabilidade cívica. E de que
um galardão de grande prestígio,
como o Prémio Camões, pode
contribuir para o reconhecimen-
to alargado dessa aliança ideal de
génio e cidadania .• n


  • Rui Vieira Nery é musicólogo e
    investigador, com uma vasta obra,
    doutorado pela Un. dos Texas (EUA)
    e prof. da FSCH da Universidade
    Nova de Lisboa, diretor de serviços
    da Fundação Gulbenkian ( atual-
    mente do Programa de Literatura e
    Língua Portuguesas), ex - secretá-
    rio de Estado da Cultura

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