COMBO SAUDE - VOLUME 1

(O LIVREIRO) #1

texto GILSON IANNINI ilustração KANIOKO^


Gilson lannini


COMO FREUD AJUDA A ENTENDER NOSSA


RELAÇÃO COM A MORTE E A PANDEMIA
í í^^numa casa que a gente se sente

só. Não do lado de fora, mas
dentro.” A frase da escritora francesa
Marguerite Duras sintetiza o sentimento
que muitos de nós experimentamos com
a Covid-19. A felicidade que projetamos
na virada do ano desmoronou feito
um castelo de areia. As relações com
amigos, familiares e parceiros migraram
para o mundo digital. O convívio com
aqueles com quem dividimos o mesmo
teto passou para regime fulltime. O
amor ou o ódio aos governantes nos
dividiram ainda mais. E nossa relação
com a morte, assunto que tentamos
encobrir com o véu do silêncio, entrou na

ordem do dia. Os mortos se contam aos
milhares. Mesmo assim, continuamos a
viver como se a morte fosse um destino
inevitável apenas para o outro.
Hó cerca de 100 anos o psicanalista
Sigmund Freud escreveu uma série de
ensaios sobre esses temas. Feliz ou
infelizmente, grande parte do que ele
diagnosticou em seu tempo continua
válido. Não custa lembrar que, logo
depois da Primeira Guerra Mundial,
o planeta foi assolado pela gripe
espanhola. Ainda nos primeiros meses
da guerra, Freud afirmaria que nossa
relação com a morte não era sincera. Em
tempos de paz, quando as notícias sobre
os mortos chegam uma de cada vez, nos
damos ao luxo de não pensar na morte
como destino inevitável. Imaginamos que
todos são mortais, menos “eu”. Não é
assim que parece pensar o vizinho que se
recusa a usar máscara no elevador?
Todos sabemos que vamos morrer.
Mas esse saber é desligado de afetos,
insuficiente para fixar crenças. O
tratamento convencional e insincero que
dispensamos ã morte é posto ã prova
quando ela se conta aos milhares, como
nas guerras e pandemias. Nesses casos,
“a morte já não se deixa mais renegar;
temos de acreditar nela”. E, no entanto,

continuamos a não acreditar. Pesquisas
mostram que a aprovação do governo
brasileiro, onde o número de casos de
Covid-19 a cada milhão de habitantes é
cinco ou seis vezes maior que a média
global, vem crescendo. Como entender
esse paradoxo? O próprio Freud nos dá
pistas: sempre que tentamos pensar em
nossa própria morte, nos vemos como
espectadores, fora da cena. Para
o inconsciente, somos imortais.
Mas por que uns acreditam na morte a
ponto de entrar em intenso sofrimento,
e outros não? As respostas a traumas
são bastante individuais, mas há
elementos de natureza social. Nesta

é filósofo e
psicanalista, professor
da Universidade
Federal de Ouro Preto
(MG) e coordenador
das Obras Incompletas
de Sigmund Freud
(Editora Autêntica),
que contemplam livros
como O Mal-Estar na
Cultura e O Infamiliar.

época tão polarizada, parece que as
pessoas não vivem no mesmo mundo,
não compartilham as mesmas crenças


  • dinâmica já descrita por Freud em 1917.
    Quando uma massa se forma em torno
    de um líder, reforçamos identidades e
    crenças. Quanto mais nos identificamos
    com outros que pensam como nós,
    nos fechamos e nos espelhamos nesse
    grupo, ficando imunes ã crítica. A
    massa não pensa. Basta olhar para
    a velocidade das fake news.
    Essa identificação quase hipnótica
    segrega quem pensa diferente de nós: o
    amor ao líder e aos iguais é alimentado
    pelo ódio ao inimigo - fenômeno
    amplificado nas massas digitais.
    Tampouco aceitamos as privações ãs
    quais fomos submetidos na quarentena
    sem culpar alguém. Pois nossa relação
    com a cultura é ambígua: a mesma
    cultura que nos protege ameaça nossa
    felicidade. Vivemos uma época em que
    não nos sentimos em casa, mesmo
    dentro de casa. Freud descreveu esse
    sentimento “infamiliar" de estranharmos
    o que nos é íntimo. E assim nossos
    conflitos se intensificam: a distância
    aumenta o amor, a proximidade
    aumenta o ódio. Sobreviver a estes
    tempos não é para qualquer um.


VEJA SAÚDE SETEMBRO 2020^
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