Crusoé - Edição 179 (2021-10-01)

(Antfer) #1

depende em boa parte da mão-de-obra barata proveniente dos países
pobres.


Em 1918 — há mais de um século, portanto —, o russo Kasimir Malevich


pintou um óleo intitulado Branco sobre Branco, no qual apresentava um


quadrado branco, inclinado para a direita, sobre fundo branco. É a
expressão mais completa do suprematismo, uma vertente da arte
abstrata que utilizava formas geométricas puras e cores básicas, para
distanciar-se radicalmente da arte figurativa. A tela está no Museu de Arte
Moderna de Nova York, e certamente o paralelo teria enriquecido de
alguma forma a notícia sobre Jens Haaning, se jornalistas ainda
cultivassem o hábito de ir a museus.


O paralelo é que uma tela branca, no caso, não é tão diferente de uma
tela em branco. Há pigmentos, trabalho manual, técnica pictórica e
currículo na tela branca de Kasimir Malevich, embora pareça coisa de
preguiçoso; não há pigmentos, trabalho manual ou técnica pictórica nas
telas em branco de Jens Haaning, obviamente. Mas há currículo e um
comentário pertinente e sagaz sobre o mundo do trabalho em geral, no
qual as trocas não parecem ser equilibradas também do ponto de vista
existencial. Desse ponto de vista, as telas em branco de Jens Haaning
estão inseridas na tradição da arte como crítica histórica, sociológica e
também de um artista em relação ao outro. Mas elas são um passo além.


Explico: para se fazer eficiente, já não bastaria a crítica dentro dos limites
da representação impostos pelas três dimensões de uma obra. Eles não
seriam mais suficientes para dar conta do aspecto a ser comentado.
Representar o salário médio anual de um trabalhador por meio de notas
verdadeiras apenas ilustraria de maneira banalmente material o fato de
que, seja na Dinamarca, na Holanda ou no Brasil, quase todo mundo acha
que ganha muito menos do que realmente merece. Era preciso revelar,
ainda, o sentimento de perda de tempo de vida que o trabalho causa. Era
preciso mostrar conceitualmente que, no mais das vezes, o que se quer
mesmo é pegar o dinheiro e correr para ter uma existência que vá além


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