Crusoé - Edição 179 (2021-10-01)

(Antfer) #1

Stephen dentro do seu labirinto na Dublin de 16 de junho de 1904 — dia


em que se passa a ação de Ulisses, festejado hoje como Bloomsday.


Já me apropriei da frase do Joyce aqui, substituindo “a história” por “o


Brasil”, e já citei dezenas de milhares de vezes aquele meme do “crime


ocorre nada acontece feijoada”, infinitamente mais fiel à nossa vida


cotidiana no Bananão que o mofado lema positivista de “ordem e


progresso”. Mas só nesta semana, assistindo à CPI da Covid com prazer


semelhante ao de Sísifo rolando a pedra, me ocorreu juntar as duas
coisas: o Brasil é um pesadelo do qual os brasileiros NÃO estão tentando
acordar. Ao contrário, parecem confortáveis com a naturalização da coisa:
todo dia saem para trabalhar e todo fim de semana batem sua bolinha
com os amigos dentro do pesadelo. É um país de sonâmbulos.


O depoimento da advogada dos ex-médicos da Prevent Senior, Bruna
Morato, à CPI na última terça (28) trouxe a público uma lista de acusações
à operadora de planos de saúde que não destoa muito


das “experiências” promovidas por Josef Mengele na Segunda Guerra. São


atrocidades que, em qualquer país civilizado como nós nunca fomos,
renderiam intervenção na empresa e cadeia para os responsáveis caso
fossem comprovadas. O brasileiro médio com acesso à internet — e que
não teve ninguém da família entre as vítimas — se indigna, vai às redes
sociais sinalizar a virtude de estar indignado, a grande onda de indignação
(real ou performática) se ergue e morre na praia: outra onda virá no dia
seguinte para encobri-la, e outra, e mais outra. Pouco importa que os
crimes ocorram em série, o desfecho é sempre o mesmo: nada acontece,
feijoada.


O brasileiríssimo Carlos Drummond de Andrade já resumia esse estado


de espírito em Explicação, poema que está em um livro (o Alguma Poesia)


publicado já lá se vão nove décadas: “Aqui ao menos a gente sabe que


tudo é uma canalha só/ lê o seu jornal, mete a língua no governo/ queixa-


se da vida (a vida está tão cara)/ e no fim dá certo”. Mudando o que deve


ser mudado (por exemplo, “jornal”, que ninguém mais lê, por “WhatsApp”)


e entendendo “no fim dá certo” como a suprema das ironias, é


®®

Free download pdf