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Tati Bernardi - A lembrança viva de uma morte


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Folha de S. Paulo/Nacional - Folha Corrida
terça-feira, 9 de novembro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Tati Bernardi


Lili, a mãe da escritora Noemi Jaffe, foi uma
sobrevivente do Holocausto que, no ano passado,
morreu de algo 'besta' (um dos xingamentos preferidos
da viúva, mãe de três filhas): uma infecção nos pés.


E, durante os 93 anos em que esteve por aqui, Lili
resistiu a muito mais, caso da traição do irmão e de
algumas primas quando estava no campo de
concentração e de uma vida conjugal sem prazer. Ainda
assim, Jaffe relata que ao final a mãe tinha adquirido
uma doçura, 'era como ser olhada por um cervo filhote',
e que, apesar de muito sofrimento físico, o pior de todos
para ela foi ter que se despedir da filhas em fevereiro de
2020, quando o corpo atingiu 'o estado de degradação e
magreza a que ele tinha chegado no campo'.


Mas não é exatamente (ou somente) para dar algum
contorno ao absurdo (e mãe morrer sempre será um
absurdo, não importa a idade: 'a mor te de uma pessoa
muito velha deveria ser como a morte de uma montanha
ou de um totem') que a autora escreve esse livro
pequeno em tamanho e gigante em beleza, dor e


autoinvestigação.

Está tudo ali dentro de Noemi: a criança apavorada sem
os sorrisos, abraços, beijos e cheiros maternos, e a
mulher madura naturalizando os dias, superando as
perdas e entregando trabalhos.

Todas as idades e possibilidades de uma filha que
nunca mais vai ouvir sua mãe a chamar pelo nome,
tampouco poderá dizer 'mãe' e ouvir uma resposta.

E a grande pergunta que a escritora gostaria de fazer é:
'Será que vou me tornar para sempre uma pessoa mais
triste? Será que já sou uma pessoa triste e agora, sem
minha mãe -minha fonte de alegria - estou mais
parecida com o que sou?'.

Cada parágrafo é uma tentativa corajosa, apaixonada e
delirante de segurar a tristeza mais tempo dentro do
peito: 'Lá vai a Noemi mais um buraco'. De ficar com a
mor te da mãe mais tempo rodando nas lembranças: 'Eu
temo a morte da morte'.

Esse livro é um manifesto lindo em defesa do não
superar tão rápido (ou, simplesmente, não superar), não
estar à mercê de uma mente 'funcional' que sabe que
precisa continuar -e isso tem que ser logo- ou de uma
memória que mais parece um 'escritório burocrático
onde se enfileiram prioridades'. Pensar na mão que
pendia inerte, no olho dentro da pálpebra que estava lá
sem enxergar mais nada e no corpo sendo devorado
por vermes.

Durante a reconstituição dessa relação, ou melhor, da
documentação por escrito de uma adoração infinita, nos
emocionamos com várias cenas tão fortes quanto
delicadas, como o batom pouco usado pela mãe
passado nos lábios da filha, ainda que não fosse a sua
cor.

O que Noemi Jaffe parece descobrir é que 'as coisas
revestidas de morte são também as coisas revestidas
de vida' e que seu esforço em apreender as lembranças
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