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(Antfer) #1

LEO AVERSA - TEMOS QUE VOLTAR AO CINEMA


Banco Central do Brasil

O Globo/Nacional - Segundo Caderno
terça-feira, 9 de novembro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: LEO AVERSA


Sim, leitor, sei que as televisões estão chegando nas
cem polegadas e que a definição de uma tela 8K é tão
precisa que dá até para encontrar espinhas na Scarlett
Johansson e humanidade em Jair Bolsonaro. Admito
que têm séries tão imperdíveis no streaming que se
você não assistir será tratado como leproso nas
reuniões sociais e cancelado no trabalho. Também
estou ciente de que se largar no sofá é o ápice da
satisfação doméstica e que ter a própria geladeira à
mão é a definição master de zona de conforto. Não, não
sou ingrato e tô sabendo que esse combo nos salvou
durante a pandemia. Porém, nem tudo se resolve em
casa.


Me desculpem os leitores devotos da conveniência
audiovisual, mas só no cinema dá para encontrar o
Santo Graal do século XXI: foco e concentração.


Não foi por falta de tentativas: até que começo bem, fico
atento ao que está acontecendo na tevê que está à
minha frente, mas logo escuto aquele sinal do
WhatsApp no celular que está carregando no quarto, o


interfone do vizinho avisando a chegada do iFood, a
sirene dos bombeiros passando lá longe. Também
aparece a vontade incontrolável de investigar setem
algo de bom na cozinha, a necessidade de arrumar o
quadro que tá torto na parede, a urgência de consertar a
torneira pingando no banheiro. Se o filme não for de
super-herói, daqueles que você já sabe o que vai
acontecer antes mesmo de ele ser filmado, dá ruim. Não
tem narrativa que resista às distrações domésticas, ao
caos particular. Temos que aceitar que só o cinema
salva as boas histórias do inferno da dispersão.

Claro que não pode ser um daqueles megas e multis de
shopping, na sessão das sete no sábado, onde a noção
de civilização é inversamente proporcional ao tamanho
da pipoca e o silêncio é considerado uma ofensa
pessoal. Estou falando dos cinemas tradicionais,
silenciosos, onde, por duas horas, o foco fica só na tela.
Um paraíso audiovisual equivalente a ler um livro na
rede, num domingo à tarde.

Digo mais: nós, pais, temos a obrigação de levar nossos
filhos, ensiná-los a prestar atenção numa história que
dure mais do que 30 segundos. Parece ridículo, mas se
eu deixar, o meu, que tem 12 anos, é capaz de ficar um
dia inteiro no TikTok, um videozinho tosco atrás de
outro, até fritar completamente os neurônios. Nada ali
tem começo meio ou fim, nem mesmo sentido, mas ele
parece não se importar. Às vezes o surpreendo
instalado no sofá com o celular no TikTok, o laptop no
YouTube e a TV ligada em algum dos 700 episódios de
Naruto. Nessa Chernobyl cerebral, não há concentração
que não derreta.

Para evitar esse apocalipse neurológico teen, é preciso
voltar ao cinema: mesmo que a gente tenha que separá-
los das telas eletrônicas com bisturi e arrancá-los de
casa com um pé de cabra, vale a pena. Por duas horas
eles - assim como nós - não terão para onde correr,
com o que se distrair. Cinema, graças a Deus, não tem
ff, rew, muito menos pause. Se não ficar atento, perdeu,
playboy, lá se foi o seu tempo e dinheiro.
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