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(Antfer) #1

Vera Iaconelli - Meu corpo, velhas regras


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Saúde
terça-feira, 9 de novembro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de
Psicanálise, autora de ?O Mal-estar na Maternidade" e


Ainda que a cegonha tenha nos largado numa família
amorosa e que tenhamos competências excepcionais,
somos fadados a nascer num determinado corpo. A
loteria genética define cores, texturas e for mas,
cabendo à linguagem nomear, classificar e atribuir valor
ao que, em si mesmo, não quer dizer nada. 'Loteria' é
uma boa palavra porque aponta tanto para a
probabilidade estatística de nascermos com
determinados atributos físicos, quanto para os valores
associados a eles.


Nossa aparência está de antemão precificada, não
havendo nada de neutro aqui. Quanto vale o sujeito que
habita um corpo masculino, alto, branco, magro,
musculoso, com traços simétricos? E um sujeito que
habita um corpo feminino, baixo, negro, gordo, com
traços irregulares ou com alguma deficiência?


Diferenças são usadas sistematicamente para justificar
o poder de alguns sujeitos sobre outros. Onde estão,
majoritariamente, os corpos negros, senão nas


periferias do mundo, onde geram outros corpos negros
que ali permanecem geração após geração?

Se tivesse que elencar a maior mazela humana, diria
que é nossa impossibilidade de reconhecer que há uma
vida que vale tanto quanto a nossa encarnada no corpo
do outro. Tema importantíssimo para a psicanálise, que
Lacan for mula em seus estudos sobre o registro
imaginário: a descoberta de si vem junto coma
descoberta do outro a quem amo e odeio. O que o outro
quer de mim? O que sou para ele? Como não sofrer em
suas mãos? Como fazê-lo me amar e como controlá-lo?

Não há povo que não tenha criado castas superiores e
inferiores, sendo que a desigualdade entre gêneros, de
tão generalizada, tende a passar despercebida em
sociedades mais cooperativas.

'Meu corpo, minhas regras'; não à toa, é um dos slogans
políticos mais fortes da luta pelos direitos das mulheres
na nossa sociedade.

Uma sociedade na qual a relação entre os humanos
seja absolutamente equânime, levando em conta as
particularidades, ainda está para ser construída.

Em um mundo no qual a sobrevivência diz cada vez
menos respeito à força física, o valor também se
desloca para as competências mentais, o que permite
que um homem como Stephen Hawking, por exemplo,
vítima de esclerose lateral amiotrófica, seja um ícone
mundial. Claro que suas chances seriam ainda mais
improváveis caso sua genialidade emergisse num corpo
negro, de mulher, ou ambos.

Não à toa, Judith Butler causou incômodo, em 1993,
com seu livro 'Corpos que Importam'; no qual aponta
que a luta feminista não deve se deter à denúncia das
injustiças que sofrem mulheres, negros, imigrantes,
transexuais... Essa luta é fundamental, mas ela deve
servir de estratégia, não um fim em si mesmo. É a
lógica que separa corpos humanos entre os que
merecem e os que não merecem viver que deve ser
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