Clipping Banco Central (2021-11-13)

(Antfer) #1

Fraturas, estilhaços, detritos


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Ilustrada
sábado, 13 de novembro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

Clique aqui para abrir a imagem

Autor: Mario Sergio Conti


De chofre e sem alarde, estilhaços da poesia implodida
de Anne Carson começam a cair por aqui. A pequenina
editora Jabuticaba publicou em 2017 "O Método
Albertine", um panfleto crítico-críptico sobre a paixão em
Proust de 45 páginas, 59 parágrafos e 17 apêndices.


O livreto fica de pé por ser uma autópsia da
personagem que mais aparece no romance de Proust -
2.363 vezes, em 807 páginas. Mas em 19% das
ocasiões ela dorme. Albertine é uma ausência. A fissura
da paixão é um oco que o amor não tapa, um caco
opaco do afã pelo nada.


Deu-se o esperado: "O Método" naufragou sem choro
nem vela na procela do mar editorial. Porque é preciso
ter Proust na ponta da língua para se comover com a
paixão por Albertine que, segundo Anne Carson, citando
Mallarmé, é um cisne "no estéril inverno que em tédio
resplandece".


Saiu agora o celebrado "Autobiografia do Vermelho"
(editora 34, 189 págs). Quando publicado nos Estados


Unidos, em 1999, o New York Times disse que era um
dos livros do ano. O que não quer dizer fácil, longe
disso. Se a vida atual se complica cada vez mais, sua
arte a acompanha.

Anne Carson é uma professora canadense de 71 anos
que, como ela disse, "ganha a vida dando aulas de
grego antigo". É ainda tradutora, crítica de literatura,
ensaísta, prosadora e poeta, além de helenista e
latinista. Tem uma aura que oscila entre austeridade e
desprezo.

O tráfego por gêneros diversos implica em tráfico de
procedimentos. Seus livros justapõem erudição
atemorizante e surtos líricos, detritos autobiográficos e
argumentação abstrata. O todo resultante é inarmônico,
arame farpado enrolado em si mesmo, protegendo não
se sabe bem o que nem por quê.

Por exemplo: as referências a Artaud e Lênin, a Oscar
Wilde e Beckett, a um sem fim de escritores antigos e
modernos, não são explicadas nunca. São pedras do
passado que o tempo não dissolveu. Mais elusivas que
alusivas, preservam sua espessa opacidade -e a do
presente.

O sucesso chegou quando Anne Carson já ia entrando
nos anos. Foi o sucesso que cabe ao arrabalde
periférico da poesia, essa arte moribunda, na cultura
contemporânea: na forma de indicações ao Nobel,
bolsas, lauréis acadêmicos. Enfim, toda a tralha de
pouca ou nenhuma importância.

A fama a pegou porque foi tida como epítome da
literatura da moda -a autorreferente, lúdica, escorada na
autoficção, adiposa e paródica, cujos termos são
permutáveis como mercadorias. Pós-moderna e a-
histórica, em suma. O sucesso talvez seja fruto de um
equívoco.

Porque Anne Carson nunca deixa de se fincar na
história. Em "Nox", seu melhor livro, ela se coloca sob
as asas de Heródoto, o pai da história, que a
Free download pdf