Clipping Banco Central (2021-11-13)

(Antfer) #1

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - O TRIUNFO DOS GRIÔS


Banco Central do Brasil

O Globo/Nacional - Segundo Caderno
sábado, 13 de novembro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: JOSÉ EDUARDO AGUALUSA


O ano de 2021 foi o da África na literatura. Escritores
africanos venceram os prêmios literários mais
importantes do planeta: o tanzaniano Abdulrazak
Gurnah ficou com o Nobel; o sul-africano Damon Galgut
como Booker; David Diopcomo Booker International
(para obras traduzidas para inglês); Mohamed Sarr com
o Goncourt, o mais prestigiado prêmio francês; e
Boubacar Boris Diop com o Neustadt, o chamado Nobel
dos EUA. Estes três últimos escritores são originários
do Senegal. Por fim, já no íntimo território da nossa
língua, a moçambicana Paulina Chiziane levou para
casa os cem mil euros do Prêmio Camões.


O Senegal consagra-se assim como uma das grandes
potências literárias de África, ao lado da Nigéria e da
África do Sul. Não é exatamente uma surpresa.
Considerado a joia da coroa do antigo império francês
na África, o Senegal sempre se destacou pela
sofisticada elite intelectual, educada nas melhores
escolas e universidades da antiga metrópole. Convém
lembrar que um senegalês, o poeta Leopold Sédar
Senghor, chegou a ocupar o cargo de Ministro da


Cultura na França, antes de se tornar o primeiro
presidente do seu país.

A recente série de premiações exprime também parte
da riquíssima diversidade étnica e cultural do
continente: há um judeu gay sul-africano de remota
origem lituana, Damon Galgut; um mestiço franco-
senegalês, David Diop; um mestiço árabe-tanzaniano,
Abdulrazak Gurnabh, radicado no Reino Unido, e um
senegalês de etnia uolofe, Boubacar Boris Diop, que
nos últimos anos vem escrevendo e publicando no seu
idioma materno. Atendendo ao grande número de
excelentes escritoras que o continente tem vindo a
produzir nas últimas décadas, a maior surpresa é não
haver mais mulheres entre os premiados.

O triunfo africano é particularmente extraordinário tendo
em conta a as altas taxas de analfabetismo que
persistem no continente. Além disso, são poucos os
países africanos que possuem boas redes de
bibliotecas públicas. O livro continua sendo, em quase
todos esses países, um artigo de luxo.

Como se explica então o boom africano? Em primeiro
lugar, as grandes tragédias que os africanos vêm
enfrentando desde há séculos, do colonialismo ao
sequestro e tráfico de pessoas, passando por guerras,
apartheid, secas, fomes etc. , pode servir (sempre
serviu) para alimentar a boa literatura. Afinal, toda a
grande literatura se nutre dos dramas da vida: das
inquietações, singularidades, dúvidas, terrores e
contradições. Por outro lado, a arte de contar histórias
(e de saber ouvi-las), tão cultuada entre os povos
tradicionais africanos, não se perdeu, inclusive nas
grandes cidades, como Lagos, Luanda ou Dakar.
Finalmente, há que ter em conta a extraordinária
diversidade étnica e cultural de que falei acima. Entre
Tunes, na Tunísia, e a Cidade do Cabo, na África do
Sul, são faladas, no dia a dia, mais de dois mil idiomas e
oito mil dialetos. A África tem 30% do total de línguas
faladas no mundo. Cada uma dessas línguas representa
uma maneira diferente de olhar e de dizer a realidade.
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