Alice Ferraz - Ninguém vai sofrer sozinho
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O Estado de S. Paulo/Nacional - Cultura &
Comportamento
sábado, 13 de novembro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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'Mas uma mulher pode contar ao mundo que tomou uma
bebedeira? Que é ou foi amante? Que traiu sem culpa?'
Se ela tivesse feito a pergunta, a resposta seria não.
Mas ela, felizmente, não fez. Cantou a verdade em
todas as suas notas. Cantou as dores, os amores, o
lado B, assumido ou não, de todas nós - e as atitudes
que julgamos em outras também. 'Como pode se
humilhar assim? Se colocar nessa situação?' Tudo está
absolutamente escancarado em músicas em primeira
pessoa. Fomos absolvidas por suas canções. 'Faltou
coragem para dizer que não bebi, liguei, caí no seu
colchão.' Ela toma a iniciativa, faz sexo sabendo que
não será assumida, e tem mais: em 'Infiel, eu quero ver
você morar num motel', ela encara o marido traidor,
mandando-o assumir as consequências de seus atos.
Não paternaliza as relações entre homens e mulheres,
todos responsabilizados, cantados em letras fortes e
ritmos envolventes. Com Marília, expulsamos segredos
que são dela e são nossos também.
Ela vestiu um Brasil machista nos tons de um novo
feminismo, assumindo o inassumível, sem fazer
apologia de sua posição. Enquanto cresci, sem
entender por que Chico Buarque cantava a nossa falta
de voz e o que não queríamos ser em Mulheres de
Atenas, 'que vivem para seus maridos, tecem bordados,
se ajoelham, sofrem e imploram', Marília ajudou milhões
de mulheres a crescerem autênticas, desvendando em
cada letra quem somos. Seu trabalho, nesse sentido, já
teria tornado sua contribuição única.
Marília, então, fez mais: uniu as mulheres que, criadas
com sentimentos atávicos de escassez e, portanto,
extrema concorrência com relação à conquista do
homem, penalizam sempre a 'outra' pela perda ou
traição, isentando o masculino considerado um fraco à
mercê de nossas estratégias de sedução.
A mulher que julga a outra e infantiliza o masculino não
faz parte da narrativa dela. Marília mostra afinidade
entre iguais, entre mulheres cúmplices, e chega a
desafiar nosso entendimento sobre amizade feminina
quando absolve a amiga que a trai com o próprio
namorado.
Marília compreende o feminino sem o verniz que a
sociedade nos impõe para nos tornarmos, como diz o
ditado, 'mulher de César', que 'não tem que só ser, mas
parecer honesta'. Marília não precisa nos santificar para
nos amar e respeitar. Marília, 'você virou saudades' para
milhões de brasileiras.
COLUNISTAS
Assuntos e Palavras-Chave: Cenário Político-
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