O tabu do pênis
Banco Central do Brasil
Folha de S. Paulo/Nacional - Ilustrada
Thursday, November 25, 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Autor: Fernanda Torres
Perdoe, leitor, o assunto sem propósito. É que o ano
acabou. E desconfio que seguirá terminando até o fim
do ano que vem. No espaço de uma volta e meia da
Terra ao redor do Sol, não enxergo sinal de recomeço
possível, antes de janeiro de 2023. Passageira desse
trem descarrilhado, dei de evitar o noticiário e me ater a
reflexões ocas, como a do tabu do pênis na indústria do
audiovisual.
Escapismo? Que seja. O escárnio é tanto -o Inep, a PF,
o desmatamento, o rombo, a crise institucional, a manhã
com Michele e a sacaneada da família real brasileira no
secretário de Cultura durante o tour das Arábias-, o
menosprezo é de tal ordem que a mente busca a fuga
como remédio para a indigestão.
Me atentei ao tabu do pênis assistindo, com atraso, ao
excelente "Carlos, O Chacal", que muito recomendo.
Uma produção franco-alemã para a televisão de 2010,
dirigida por Olivier Assayas, sobre a vida do terrorista
Ramirez Sánchez, interpretado pelo também
venezuelano Édgar Ramírez.
Na manhã seguinte ao primeiro atentado bem-sucedido,
o Chacal acorda despido sobre um colchão surrado. É
dia. Sonolento, ele se senta com as pernas abertas e se
deixa estar. Depois, ergue-se diante da lente, vai até o
espelho e admira o corpo magro, jovem, forte,
extremista. É um plano longo, sem sexo, mas sensual.
E a cena se repete como passagem de tempo, um ou
dois capítulos adiante. Fracassado, o Chacal desperta
em outro colchão podre. Trinta quilos mais gordo, ele
arrasta a barriga de barril, as coxas, os braços roliços, a
bunda e o pau pelo quarto. A ascensão e queda do
guerrilheiro nu. É um dos pênis mais bem inseridos na
trama da história do cinema.
Chacal é um anti-herói. Anti-heróis são mais propensos
ao risco e ao ridículo, mas o bom tom exige reservas do
herói. Daí as sombras estratégicas nas cenas de amor,
a fartura de lombos e ombros, o não acabar de bíceps,
as nádegas a galopar. É a convenção. As mulheres, ao
contrário, pululam nuas de frente e de costas sem
restrições. Exploração?
Bem possível. Mas não só.
Não é fácil, para um homem, se despir em público. A
intimidade da fêmea é, por natureza, virada para dentro.
A do macho é nervo exposto, é marca pessoal, o outro
rosto do sujeito, seu segundo caráter. Todo nu
masculino é ginecológico.
Santo Agostinho já praguejava contra a independência
enervante do órgão. Michelangelo diminuiu as
proporções do gigante Davi, para torná-lo apresentável.
Adorado na Antiguidade, o pênis foi excomungado na
Era Cristã e, hoje, carrega 2.000 anos de exigências
nas costas.
Não há como ignorá-lo ou exibi-lo sem a consciência do
ato.