Paixão Pelo Vinho - PT - Edição 83 (2021-Trimestral)

(Maropa) #1
edição 83 • Paixão Pelo vinho • 71

Nunca é demais falar no vinho de talha.
Não apenas porque resulta de uma tradi-
ção milenar quase única, mas porque em
Portugal e mais concretamente no Alen-
tejo, a produção deste tipo de vinho per-
maneceu ininterrupta ao longo de mais de
2000 anos. Quem a trouxe, como se sabe,
foram os Romanos que aqui se estabelece-
ram durante vários séculos, tendo-se dedi-
cado, entre outras culturas, à produção de
vinho. O vinho de talha permaneceu na-
turalmente no Alentejo, território onde a
pedra não abunda e o Homem aprendeu a
utilizar a terra para dar conforto à sua vida.
O alentejano fez a sua casa de terra (a taipa
e o adobe, de que a maior parte da habi-
tação tradicional do Alentejo é feita, utiliza
terra crua) e fez o seu vinho em talhas de


barro, extraído da mesma terra e por ele
moldado e cozido. Por isso podemos di-
zer, com pouca margem de erro, que o vi-
nho de talha é o mais primordial de todos,
aquele que mantém a relação umbilical à
terra que o viu nascer durante mais tempo.
O processo de elaboração do vinho de ta-
lha permanece praticamente igual ao que
os Romanos deixaram. As uvas, depois de
colhidas, são esmagadas numa mesa de
ripanço e são colocadas na talha de bar-
ro, onde a fermentação se inicia esponta-
neamente. Com o início da fermentação,
as massas, constituídas pelas peles e en-
gaço das uvas, sobem à superfície da ta-
lha, podendo formar um tampão, a manta,
que impede a oxigenação do mosto e leve
a talha a rebentar. Para evitar isso e para
transmitir mais aroma, cor e sabor ao vi-
nho, a manta é mergulhada várias vezes
ao dia com a ajuda de um rodo, operação
manual de grande importância. Com o fi-
nal da fermentação as massas assentam no
fundo da talha e funcionam como um filtro
natural para retirar o vinho, através de uma
torneira colocada num orifício na parede
do recipiente, perto da base, quando che-
gar a altura certa.
No dia de São Martinho o mundo vitiviní-
cola entra em festa. A celebração do vinho
novo, representa o culminar de um ano de
trabalho, na vinha, na vindima e na adega,
o encerramento de um ciclo e o início de
outro. Na cultura alentejana, onde a pro-
dução de vinho de talha perdura, esta é a

JOÃO Pereira SantOS

festa mais esperada. O vinho liberta-se da
talha que o aprisiona e espalha alegria à
sua volta.
Hoje o vinho de talha vive um momento
diferente. Deixou as tabernas que o man-
tiveram durante séculos e passou para as
mesas mais exigentes, ao atrair um consu-
midor informado e conhecedor, que privi-
legia o caráter, a diferença, a autenticidade
e a história. Passou por isso a ser também
produzido por enólogos e produtores que
buscam um produto diferenciado e autên-
tico, mas trazem outras práticas e conhe-
cimentos. Se alguns seguem o modelo tra-
dicional de produção, outros pretendem
inovar e seguir outros caminhos, apesar de
nesse caso o vinho não poder ostentar a
designação de Vinho de Talha DOC, con-
ferido pela Comissão Vitivinícola Regional
do Alentejo.
Independentemente das tradições e das
opções de cada produtor, e apesar de nem
todos os produtores optarem por abrir as
talhas no dia de São Martinho, este continua
a ser o momento simbólico onde o vinho
novo é apresentado e festejado. Embora
ainda haja muito a descobrir sobre a histó-
ria do vinho de talha, e independentemente
das mudanças e continuidades que se veri-
ficam, eles estão aí, agora mais acessíveis ao
consumidor, como testemunho da história
e da civilização mediterrânica. Vamos apro-
veitar este São Martinho para os conhecer-
mos melhor e deleitarmo-nos com eles.
Um brinde à vida, com um vinho de talha!

ViNHo boM

dia de São


Martinho


dia de abrir


as talhas e provar


o vinho novo


No momento em que escrevo este
texto a vindima já terminou e o
vinho encontra-se em período de
repouso nos seus recipientes, sejam
eles barricas, depósitos, tanques ou
talhas onde, em alguns casos passará
o Inverno. No entanto, algum desse
vinho, o chamado vinho novo, foi
aberto a 11 de novembro, dia de São
Martinho. Em particular o vinho
de talha, que nos merece especial
atenção.

> fotografia D. R.
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