TEXTO FABIO MARTON | IMAGEM GETTY IMAGES
ALMANAQUE Arte & História
E
m 2004, o papa João Paulo II recebeu o patriarca
ortodoxo Bartolomeu I no Vaticano. O anfitrião
aproveitou a oportunidade para pedir desculpas:
“Vamos compartilhar, numa distância de 800 anos, o
sentimento de dor e desgosto”. Ele se referia ao saque de
Constantinopla na Quarta Cruzada, em 1204, um evento
tão infame que, quase um milênio depois, ainda podia ser
motivo para retratações (que foram aceitas).
A Quarta Cruzada foi lançada para tentar reconquis-
tar Jerusalém, (re)tomada pelas forças de Saladino em
- Liderando as forças, estavam os francos, que entra-
ram num acordo com a República de Veneza para prover
o transporte a eles. Antes mesmo de saírem, receberam
uma proposta do príncipe Alexios Angelos para fazerem
um desvio para a capital do Império Bizantino. Ele que-
ria que eles o ajudassem a instalar no trono seu pai, Ale-
xios III, deposto por uma revolta. Em troca, receberiam
suprimentos e financiamento para o resto da missão.
Com a ajuda dos cruzados e seus aliados venezianos,
Alexios, o filho, seria feito imperador em 1203. No ano
seguinte, outra revolta o levou do trono para a masmorra.
Quando os cruzados souberam que Alexios havia sido
executado, decidiram tomar Constantinopla – o saque
seria a forma de receberem o pagamento prometido. No
final, acabaram dividindo o Império Bizantino e instalan-
do seu próprio Império Latino, que duraria até a restau-
ração bizantina em 1261. Jerusalém ficou na promessa.
Em 1838, o rei Luís Filipe I pediu a Eugène Delacroix
um quadro retratando o evento. O pintor era o autor de A
Liberdade Guiando o Povo, sobre a revolução que havia
posto o próprio Luís Filipe no poder. O resultado não foi,
talvez, o que o monarca tinha em mente. Em vez de celebrar
a conquista dos francos, ancestrais dos franceses, o autor
liberal preferiu mostrar um massacre, numa imagem
convoluta e violenta, que lembra as atrocidades de outro
“cruzado” na memória recente, Napoleão Bonaparte.
A GRANDE INFÂMIA ETERNIZADA
A ENTRADA DOS
CRUZADOS EM
CONSTANTINOPLA
HABITANTES
O Império Bizantino falava
grego, mas era o que havia
restado do Império Romano
- eles chamavam a si
próprios de “romanos”
e nada mais. Gente de
todo o mundo morava na
cidade – inclusive nórdicos.
A guarda varangiana,
formada por mercenários
do norte, existia desde os
tempos vikings e tentou,
em vão, repelir os invasores.
O SAQUE
Constantinopla era o entreposto final de uma das duas
rotas de especiarias que proviam a Europa com caríssimos
temperos e seda – a outra era controlada pela própria
Veneza. Por três dias, cruzados e venezianos roubaram
casas e igrejas, destruíram construções insubstituíveis,
como a Grande Biblioteca, e estupraram até freiras.
MARINHA DECADENTE
A locação estratégica já era ocupada desde a Grécia antiga.
O Estreito de Bósforo separa o Mar Negro do Mediterrâneo e
a Ásia da Europa, permitindo controlar o acesso naval a uma
imensa região. A Marinha bizantina foi uma força temida em
séculos anteriores, sendo a única portadora do chamado fogo
grego, lança-chamas medieval. Mas então era praticamente
inexistente – tinha 20 navios contra 200 dos cruzados.
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